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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Conto de Natal






Por mais moderninhas e descoladas que sejam, todas as garotas guardam dentro de si o velho e conhecido desejo de se casarem, terem um casal de filhos, um marido bonito e atraente, e claro, muito bem sucedido. E mesmo que digam o contrário, isso é um fato. Seja a garota que toma vinho barato na calçada da Rua Augusta na madrugada quente de São Paulo, ou aquela que acorda às sete da manhã aos domingos para assistir a primeira missa da semana.
Com Vera não era diferente. Quando criança, prendia um grande pedaço de papel higiênico na tiara e saia correndo pela rua. Imaginava-se a noivinha mais bonita do mundo, e certamente com a cauda mais branca, criativa e perfumada que poderia existir. Na pequena cidade onde fora criada, todos a conheciam como a noiva da rua 41. Esse apelido sempre a satisfez e adorava ouvir as senhoras que lavavam as calçadas gritando e acenando enquanto ela corria fazendo o papel esvoaçar, entrelaçando-se com os cabelos ruivos. Mas naquela idade, Vera não imaginava que quando não estava presente, seu apelido na realidade era “diarréia enlouquecida”. A garota cresceu, mudou de cidade, mas o desejo de criança permaneceu. O problema é que Vera não tinha um namorado há quatro anos, e a pequena noiva da rua 41, beirava os 37 anos de idade. Para uma mulher de 37 anos, não ser casada, e não ter a possibilidade de casamento nem em vista, é uma vergonha. Para ela, para família, e até para o futuro noivo. Todos sabem que, se com 40 anos a mulher ainda é solteira, algum problema ela deve ter. O estranho nisso tudo, é que Vera era extremamente normal. Nunca ouve uma mulher tão normal quanto ela. Exceto algumas excentricidades que todos possuem, como gostar de arroz queimado, ter vergonhosas crises de riso em momentos de desespero e não conseguir ver séries de números com mais de 3 dígitos e não somá-los. Detalhes a parte, ela é normal. Também não é de má aparência. Não é possível defini-la como bonita, tão pouco como feia.
Ela já havia se conformado com sua realidade, mas nessa época do ano era sempre a mais difícil. O dia dos namorados, que teoricamente era pra ser um dia péssimo, era um ótimo dia. Antes de chegar à imobiliária, onde trabalhava, ela passava pela floricultura, escolhia com cautela as flores mais bonitas, e pedia que entregassem o presente algumas horas mais tarde, no escritório. As velhas senhoras, e até as estagiárias jovenzinhas contorciam-se de inveja e de curiosidade quando viam aquele imenso buquê destinado a ela. Um caso antigo – dizia ela, com um sorriso no rosto enquanto simulava uma ligação apaixonada para algum rapaz inexistente. E voltava para casa caminhando, com as flores na mão, imaginando as pessoas que passavam por ela, e invejavam o bom gosto do apaixonado namorado que lhe dera flores. Mas em dezembro, ela sempre estava de férias, suas poucas amigas estavam com suas famílias, maridos ou namorados, e ela se via sempre sozinha, numa cidade grande, sem ninguém. A solidão era sua única companhia.
Era véspera de natal, e Vera encontrava-se sentada no sofá, perguntando-se porque insistem em todo ano, exibir aquele show cafona do Roberto Carlos na TV. Observou aquele ex-galã cantando músicas que embalaram algumas de suas noites, admirou seus cabelos grisalhos, e questionava-se se o Rei era adepto a escova progressiva, ou a boa e velha chapinha. Subitamente desejou um gole de vinho. Afinal, lá estava ela, na noite de 24 de dezembro, sem nenhum peru que pudesse comer ou comê-la. Merecia embriagar-se até que o álcool a fizesse dormir feito uma mulher amada. Vestiu uma roupa qualquer, e pelas ruas escuras e quase vazias, foi em busca de seu único e acessível prazer. Encontrou uma loja de conveniência, num posto de gasolina a duas quadras de sua casa. Foi muito mal atendida pela vendedora. Se ela tivesse em qualquer outra situação, entenderia que o mau atendimento não é uma coisa pessoal, mas que é muita sacanagem ter de trabalhar enquanto todos estão se divertindo, mas naquele dia, Vera não entendeu, e do fundo de sua alma, não queria mesmo entender. Ela adoraria ter um trabalho para fazer naquela noite, ocupar a cabeça, mas não tinha. Estava presa com ela mesma no apartamento mais triste da terra, exceto claro, o da família Richthofen.
No pequeno e precário estabelecimento não tinha vinho, então pegou duas garrafa de vodka. Antes de chegar ao caixa, Vera vingou-se da má vontade da vendedora: soltou uma das garrafas, que espatifou no chão, fazendo com que a vodka espirrasse por quase, se não todo, o local. Acho que Deus não quer que eu e meus amigos fiquemos bêbados essa noite! Vou levar uma só! – disse, sorrindo descaradamente. Pagou, e saiu da loja.
Voltava para casa em passos lentos e goles profundos. A rua estava vazia. Virou a esquina, e um carro vinha em sua direção, e quando se aproximou mais de Vera, o automóvel diminuiu a velocidade. Em dias normais, Vera já teria saído correndo, mas no natal, não teve medo. Ninguém mata ninguém no dia 24 de dezembro. Tem que ser uma pessoa bem sem vergonha na cara. O vidro do carro desceu, fazendo aquele barulho de tecnologia barata ecoar pela noite. Um rapaz bem afeiçoado disse alguma coisa, mas Vera não conseguiu ouvir. Talvez porque a vodka já estivesse fazendo efeito, ou porque o cara tenha falado baixo demais. Isso não vem ao caso. Vera caminhou em direção ao carro e inclinou-se um pouco. Entra, agora! – disse o rapaz, num tom de voz tão másculo e violento, que a mulher entrou.
- Quero dinheiro! Cartão de crédito! Celular! A gente vai dar uma volta até o banco!
Retiro o que disse anteriormente, Vera é uma mulher quase normal, digo quase, porque se fosse normal mesmo, teria feito o que o rapaz pediu, mas não foi o que fez. Como uma pessoa quase normal, Vera teve uma de suas vergonhas crises de riso nervoso. O homem achou que ela estivesse chorando no inicio, mas assim que percebeu que era riso, mandou com que ela calasse a boca. Vera deu gargalhadas! Tentava pedir desculpas, mas não conseguia. Dava muita risada. E o homem, incompreensivelmente não se irritou mais. Começou a achar graça também. Os dois riam agora. Ela, porque achava que iria morrer. Ele, porque achava que ela era louca. E passaram-se um ou dois minutos assim, até que Vera conseguiu se conter, e parou de rir. O silêncio que veio a seguir foi a coisa mais estranha que ambos já haviam sentido. Vera então, levou a garrafa de vodka até a boca, e sugou boa parte do liquido garganta abaixo.
- Tem um caixa 24 horas depois do terceiro farol, à direita. Quer vodka?
O rapaz aceitou. Assim como ela, deu uma bela tragada na bebida. Tirou do cinzeiro do carro um baseado e acendeu. O cheiro forte, e o som da brasa queimando fizeram com que Vera se desse conta do que estava acontecendo. Estando ela com 37 anos, solteira, sozinha, sem perspectiva de melhoras, pediu-lhe então para experimentar. Não posso morrer sem nunca ter fumado maconha – concluiu ela.
Duas horas depois, o rapaz ainda não conseguia achar o tal banco, e tão pouco voltar para a rua onde pegara a moça ruiva. Vera não se importava com aquilo. Sinceramente, ela tinha a certeza que aquele fora a melhor véspera de natal dos últimos anos.
O rapaz, que se chamava Jorge, estacionou o carro. Ele também estava gostando daquilo tudo. Talvez o efeito da maconha tenha amenizado toda a situação. Começara a sentir-se atraído por Vera, e Vera, naquela altura, sentia-se atraída por tudo e todos.
Quando o relógio marcou meia noite, Jorge a beijou. Um beijo longo, lento, quase apaixonado. Ela correspondeu.
Começaram a namorar, e Vera não precisava mais fingir ligações para falsos namorados. Um ano depois se casaram, fazendo com que a mulher, antes solitária, tivesse a certeza que não havia absolutamente nada de anormal com ela. Sentiu-se amada. Foi um casamento lindo. Vera estava linda. Na noite de núpcias, Jorge espalhou pelo quarto pétalas de rosas, e segurou a cabeça de sua esposa por cinco minutos dentro da hidromassagem. Jorge também era quase normal, digo quase porque, ninguém normal assaltaria alguém na noite de natal.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Madalena


Era uma noite de maio, talvez a mais fria dos últimos tempos. O vento enrubescia as bochechas das pessoas que insistiam em sair de casa, e qualquer sorriso mais avantajado poderia provocar uma rachadura nos lábios já congelados. Foi devido à intensidade do frio, que Angélica, mesmo estando num dos quartos de motel mais nojentos que já havia freqüentando, estava feliz de não estar do lado de fora. O pequeno quarto era bem precário. Um carpete marrom se estendia por todo chão, e em certos lugares, quando pisado, sentia-se a sola dos pés descalços grudando suavemente no chão. Não tinha muitas mobílias. Um criado mudo com um abajur de porcelana estava do lado de uma grande cama, que ocupava quase todo o dormitório, dando a impressão de que o cômodo era muito menor do que realmente era. Uma poltrona de estofado azul estava estrategicamente colocada num dos cantos, sentado nela, dava-se para analisar tudo o que acontecia no quarto. Era assim que Angélica se encontrava. Sentada na poltrona, ainda nua, dava longos tragos no seu cigarro, e observava aquela cena. Lá de fora, a luz do poste conseguia atravessar a janela e juntava-se com a fumaça que a moça soltava de seus pulmões, criando assim uma cortina mágica, que fez a mulher lembrar-se da nave da Xuxa, dos anos 80 . Para um produto que prejudica a saúde, o cigarro até embelezava o ambiente. Depois de um tempo, Angélica não tragava mais para suprir sua necessidade de nicotina, mas apenas para ver a fumaça densa se dissolvendo no ar, e lembrar-se na sua infância. O grande volume que estava sob a cama se movimentou, soltou alguns grunhidos e voltou a dormir. Angélica sentiu-se aliviada, não queria transar de novo. Não nos próximos trinta minutos, e não mais com aquele homem. De dentro da bolsa, retirou um pequeno frasco, e derramou o pó branco na sua coxa nua. Enrolou uma nota de dez reais, e aspirou tudo numa agilidade quase profissional. Levantou-se e foi ao banheiro. A imagem que via no espelho, não a agradava. Achou seus seios caídos demais, sua pele seca demais, e seus olhos fundos demais. A vida que estava levando nos últimos três anos era demais para aquele corpo mirrado suportar.
Fazia força para acreditar que, no fim das contas, aquele trabalho não era tão doloroso assim. Sempre que alguém a questionava, ela dizia que fazia pelo dinheiro, e também porque gostava. Para dar mais veracidade a sua versão, e sentir-se um pouco menos constrangida, contava em tom de deboche que quando criança, já fazia varias posições do kamasutra com sua Barbie e seu Ken. “Sempre gostei de sexo” – dizia antes de mudar de assunto repentinamente.
O homem acordou, e foi ao banheiro. A bunda peluda e murcha tremia feito gelatina a cada passo que ele dava. Angélica acompanhou aquele caminhar tão pesado somente com os olhos, e segurou-se para não rir do movimento engraço que o membro do senhor fazia. Teve que aspirar mais uma dose de coragem para agüentar tudo outra vez. Deitou-se na cama, e sentiu a textura do lençol. Cheirava forte a naftalina, mas em certos pontos, um perfume suave, provavelmente daquele cliente, amenizava os outros odores.
Assim que a porta do banheiro abriu, Angélica assustou-se com a visão que teve. O homem já estava vestido, e de seus olhos, lagrimas escorriam, molhando as bochechas e penetrando ao meio dos pêlos da barba grossa. Angélica percebeu no ato: Agora sua boca teria outra função, a de falar e aconselhar.
Sentaram-se na cama, e ele começou a desabafar. Contou que tinha mulher, e duas filhas. Angélica se fazia de interessada, mas estava tentando abotoar seu sutiã sem parecer deselegante. Ele tirou da carteira duas notas de cem reais, entre tantas as que tinha ali. Entregou-as a moça, e continuou falando. O homem estava com câncer, e jurou que só aceitou os serviços daquela morena, pois tinha medo de morrer sem ter realizado alguns de seus fetiches. Pediu desculpas, e desabou no choro. Nos intervalos dos fortes soluços que ele dava, dizia em tom baixinho que não queria morrer. Que amava a sua vida.
Angélica se emocionou, afinal, apesar de todos duvidarem, ela também tinha sentimentos. Vestiu-se por completo e sentou-se na poltrona, observando aquela cena triste e patética ao mesmo tempo. Percebeu que seu cliente tinha uns traços muito parecidos com o do seu falecido pai, e se parabenizou mentalmente por não ter tido essa percepção no começo da noite. Isso teria sido muito difícil pra ela, e certamente, mais caro para homem.
Já passavam das vinte e uma horas, e ela ainda teria que trabalhar mais. O homem continuava chorando, e pela primeira vez naquela noite, desejou estar do lado de fora, congelando no frio da madrugada.
Será que você pode me dar uma abraço? – disse o senhor com muita dificuldade. Angélica deve ter feito uma expressão negativa, pois logo em seguida, o homem continuou:
- Estou morrendo, menina. Só um abraço.
Ela caminhou suavemente até ele, deixando pegadas do seu salto agulha no carpete. Ela o abraçou, e por um momento, sentiu-se com seu pai novamente. O homem a apertou fortemente, como uma mãe quando abraça seu filho antes do primeiro dia de aula. Ela entregou-se a esse sentimento, e quase derramou lagrimas junto com aquele desconhecido. As mãos do homem percorreram o seu corpo, e repousaram sob suas nádegas, apalpando-as. As mãos dela deslizaram sob as costas dele, repousando no abajur de porcelana que estava sob o criado mudo. Levantou o objeto e acertou em cheio naquela careca lustrosa. O corpo caiu no chão, já imóvel. Angélica apanhou a carteira, recheada de notas de cem, e colocou dentro da bolsa.
Eram quase dez da noite, e ela já tinha o dinheiro de uma noite toda de trabalho. Respirou aliviada. Chegaria em casa a tempo de contar uma história para sua filha dormir.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sete



O sino da igreja bateu três vezes. Ela, como ultimamente andava com o sono muito leve, despertou. Deus uns tapas no travesseiro com a intenção de deixá-lo mais macio, mas sabia que não conseguiria dormir novamente. Contentou-se em admirar as cores do ser quarto perante a penumbra. O rosa adquirira outra tonalidade naquela circunstância. Caiu o olhar em uma de suas bonecas e de certa forma, achou graça da situação que as duas se encontravam – paradas, com os olhos arregalados, olhando para o vazio. Lembrou da história que ouvirá no colégio, e mesmo não sendo a boneca assassina da Xuxa, preferiu se precaver. Levantou-se e atirou a boneca dentro do guarda roupa, deu duas voltas na chave, e voltou para a cama.
A noite estava demasiadamente quente, mas não era a temperatura desagradável que a inquietava.
Rebeca tinha seis anos, em poucos dias faria sete. Considerava-se uma criança infeliz. Talvez, se ela fosse outra pessoa e a conhecesse no parquinho da praça, sentiria pena de si mesma. Crianças raramente têm essa noção de felicidade e tristeza, mas Rebeca tinha isso muito bem definido. Laura, sua mãe, morrerá há dois anos de câncer no pulmão. Ouviu uns comentários de que o tumor estava do tamanho de uma laranja, mas naquela idade, e com a imaginação que tinha, achou que a laranja havia deixado sua mãe doente. Não comeu mais laranja desde então. Valter, seu pai, se distanciou muito da filha nesse tempo, ele sempre fora um homem fraco. Os homens são sempre mais fracos que as mulheres. Durante esse tempo de luto, Rebeca não se deu o luxo de derramar uma lagrima pela perda da mãe, já que o pai derramava o suficiente para os dois. Há três meses, Cintia começou a freqüentar a casa da família. Rebeca a achava ridiculamente estúpida e feia demais para namorar com seu pai, mas não fez birra e tentou compreender a situação, afinal, ele tinha lá as suas necessidades, e pelo menos agora, ele voltara a fazer a barba regularmente e já não espetava as suas bochechas com aqueles pêlos duros e pinicantes. Tentou voltar a comporta-se como uma menina normal, mas as atenções estavam sempre voltadas a Cintia, e isso a magoava mais que tudo na vida. A garota não estava feliz com essa situação, e a felicidade que pairava sob aquela pequena casa de janelas azuis, não pairava sob a pequena criança de cabelos loiros. A cada dia que se passava, se dava conta que sua vida estava tomando um rumo totalmente diferente daquele que ela havia imaginado. Realmente, Rebeca era muito precoce.
Foi diante desses problemas e de tamanha angustia que até a faziam vomitar, que bolou um plano. Rebeca estava mais que decidida: Fugiria com o circo.
Naquela pequena cidade de um pouco mais de quinze mil habitantes, o costume de ir ao circo era quase um ritual. Uma vez a cada quatro meses, os caminhões coloridos despontavam no inicio da rua, e vinham alegrando e contagiando os olhos curiosos que admiravam a passeata. Sempre fora assim, desde a época que seu pai ainda era um garotinho gordo.
A lona já estava perdendo a sua forma mágica, pronta para se transformar em um grande pedaço de nada, jogado em cima do caminhão, e se não fosse naquela hora, a menina acreditava que não seria capaz de suportar mais quatros meses para ter uma nova chance.
Novamente levantou-se da cama, agora menos sonolenta, e a escuridão já não era um grande empecilho para seus olhos. Puxou uma pequena mala da Hello Kitty que escondera entre a cômoda e a penteadeira da Cinderela. Vestiu um dos seus vestidos mais coloridos e calçou um sapatinho vermelho que ela adorava, mas quase nunca usava porque lhe dava bolhas nos pés. Não importava-se com a dor que iria sentir, queria apenas causar uma boa impressão ao dono do circo. Dentro da mala colocou três peças de roupa, uma bússola que ganhara de seu avô, e uma foto 3 x 4 de sua mãe. O segundo maior medo de Rebeca era de um dia, quando se transformasse em mulher, não se lembrar mais do rosto de sua mãe, já que o cheiro ela já havia esquecido. O primeiro era morrer de câncer, como ela.
Desceu as escadas imaginando como seria essa sua nova vida. Poderia ser bailarina, palhaça, ou vender algodão doce. Só não toparia fazer nada que envolvesse altura, já que morria de medo de lugares altos.
Deixou um bilhete, escrito com uma letrinha redonda e caprichosa, colado na geladeira. Deu uma ultima olhada na casa, como se tivesse se despedindo dos móveis e das paredes que tanto sabiam de seus sentimentos, e saiu pela porta da frente, cortando a cortina de neblina que dava um ar quase mágico quando encontrava-se com a luz dos postes da rua.
Pela manhã, seu pai se deu conta do que havia acontecido, mas já era tarde. O circo já havia deixado a cidade.
Quatro meses mais tarde, os caminhões coloridos voltaram à região. Mas a menina não voltou com eles.
Rebeca já tinha sete anos, e finalmente pôde sentir o cheiro de sua mãe novamente.
quinta-feira, 30 de julho de 2009

A quinta




Nunca conheci ninguém que tivesse o sonho de ser atendente de loja de conveniência, ou monitor de buffet infantil. Não que essas profissões não sejam importantes (por mais que no fundo, sabemos que realmente não são), mas porque todo mundo nutre um sonho que mude nossa maneira de viver, que mude o modo como vemos o mundo e mude também, o modo como o mundo nos vê. Ser caixa de supermercado também não era o que Cátia esperava para sua vida. Aliás, ela mesma vivia se corrigindo a respeito de sua profissão. Era caixa de hipermercado. Acredito que essa pequena mudança já a fazia se sentir um pouquinho mais importante, ou menos descartável. Ela era uma funcionaria exemplar. Nos seus quatorze anos de profissão, só chegou atrasada uma vez, devido a uma greve do metrô, e faltou apenas três vezes, quando teve que viajar para a Paraíba para dar seu último adeus a sua mãe, que morrera de câncer de estômago. Nessa ocasião, usou o dinheiro que estava guardando para a compra de uma geladeira nova em passagens de avião. Não queria faltar muitos dias e deixar o pessoal do hipermercado na mão. Mas no fundo sabia que qualquer estoquista poderia ocupar o seu lugar. Cátia era capaz de registrar 47 produtos em menos de três minutos. Ela treinou muito para conseguir tal feito. Mas naquela quinta-feira abafada, aquela mulher com a pele já marcada pelo sofrimento, não estava em um dos seus melhores dias. Registrou o mesmo produto duas vezes e teve que chamar o gerente para cancelar o item, e deixou que um vidro de azeitonas escorregasse de sua mão e caísse sob a esteira de borracha, quebrando-se e espirrando aquela água salgada no vestido de uma dona de casa de classe média. A mulher sentiu-se tão ofendida e tão constrangida pelo cheiro de oliva que passou a exalar, que saiu do hipermercado mais rápido que Cátia não teve tempo nem de pedir desculpas.
Quando ainda era uma menina, quase adolescente, fez uma viagem com seu pai a uma cidadezinha vizinha, e foi nessa viagem que Cátia viu uma TV pela primeira vez. No primeiro momento ficou completamente extasiada com o fato de tanta gente caber dentro daquela caixa, mas alguns segundos depois, a pequena garota que vestia um vestidinho de chita especialmente costurado pela sua mãe para essa viagem, transbordou de alegria. Foi paixão a primeira vista. Nos três anos seguintes, ela nunca mais visitou a tal cidadezinha, e também nunca mais viu uma televisão. Até que uma família vinda de Belo Horizonte abriu uma padaria na rua de sua casa, e nessa padaria, uma pequena TV de quatorze polegadas foi instalada. Desde então, Cátia não saiu de lá. Assistia a todos os programas, e muitas vezes, seu Geraldo tinha que manda-la para casa para poder fechar o estabelecimento. Sua mãe dizia que ela já estava virando uma moça, que já era hora de arrumar um namorado e tocar sua vida, mas Cátia já estava apaixonada pelo Tarcisio Meira.
Foi nessa época que ela decidiu o que queria para sua vida. Queria ser atriz, igual Regina Duarte. Quando fez dezoito anos mudou-se para São Paulo, dizendo que iria estudar para ser médica, mas na verdade, a medicina só entraria para sua vida se fosse essa a profissão de sua personagem na novela das oito. Chegando em São Paulo, a frieza dos prédios a assustaram, e sua vida tomou outro rumo. Já havia perdido as esperanças, mas elas foram reanimadas há três meses atrás por um anúncio na TV. Enquanto passava sua roupa em cima da mesa da cozinha forrada com uma toalha de banho, Cátia ouviu um apresentador narigudo de cabelo engraçado anunciar um concurso, no qual seria escolhida uma mulher para integrar o elenco da nova novela da emissora. Ela escreveu sua carta, e junto, também enviou uma foto de corpo inteiro,como mandava o regulamento. A fotografia havia sido feita há três anos atrás, no casamento de um amigo do hipermercado, mas Cátia não achava que havia mudado muito desde então, e enviou aquela mesmo. Particularmente, era a fotografia dela que mais a agradava. Usava um longo vestido lilás,com uma echarpe longa que lhe caia sobre os ombros. Parece uma estrela de cinema – disse Gustavo, o garoto que trabalha na sessão de carnes.
Na última quarta-feira, Cátia recebeu um telegrama da produção do programa, que agradecia o interesse dela em participar da seleção, mas ela não era o perfil procurado. Este era o motivo do desânimo da caixa naquela quinta-feira abafada. Esperou com tamanha ansiedade receber uma resposta do programa, que não imaginou que se quer poderia participar da seleção. A sensação que sentiu foi semelhante a que teve quando ainda criança, seu pai havia prometido comprar um litro de refrigerante na noite de natal. A garota ficou sentada na calçada de casa esperando seu pai chegar do trabalho, trazendo aquela bebida que era tão gostosa, mas tão fora do orçamento da família, mas quando viu seu pai apontar no inicio da rua de mãos vazias, entrou na cozinha e preparou um suco em pó para a família. Aprendeu a se contentar, aprendeu a viver sem ter o que queria. Agora, ela tinha a certeza que teria que se contentar em ser caixa de hipermercado, assim como fez com o suco em pó...
Seu turno estava próximo do final, e ela não via a hora de colocar suas roupas e ir para casa. A pele de seu rosto tinha um brilho devido as gotas de suor que insistiam em brotar na sua testa, suas costas doíam, e seu coração, bom, este, Cátia tinha certeza que já havia parado de bater na noite anterior,quando abriu aquele envelope idiota.
Um rapaz trajando bermudas e camiseta chegou ao caixa que ficava do lado do de Cátia. Ela estava numa posição que, os clientes do caixa que ficava a sua direita, ficavam de costas para ela. Seu caixa estava vazio, e ela contava os minutos para fechá-lo e ir para casa. Observou o rapaz e notou que ele não tinha nada nas mãos. Imaginou que ele compraria essas coisinhas que os supermercados colocam na boca do caixa, que quando olhamos para elas, sentimos uma necessidade muito grande de adquiri-las. Apostou consigo mesma que este rapaz tinha cara de quem compraria preservativos. Que iria para algum baile mais tarde e talvez, encontraria uma companhia. Inclinou-se um pouco para o lado para poder ver o que o rapaz pegaria, mas notou que agora, o rapaz tinha sim algo nas mãos. Uma arma. Tudo aconteceu muito rápido. De canto de olho, viu Claudete com a boca mais aberta que de costume, com os olhos arregalados, fixos na arma do rapaz. Seu Jair, o gerente, estava logo atrás de Claudete e cometeu o erro de tirar o celular do bolso. O rapaz apontou a arma para o homem e apertou o gatilho. O barulho ecoou pelo hipermercado todo, e até Marcos, que trabalha no estoque de eletrônicos, do outro lado daquele grande galpão, disse que pode ouvir o estrondo. O barulho assustou Cátia, e num ato instintivo, pegou o vidro de azeitonas que ainda estava no lixo ao seu lado e cravou os cacos pontiagudos que estavam presos na rosca da tampa, no pescoço do rapaz. O sangue esguichou alguns metros, manchando a capa da Veja e da Caras que estavam na prateleira. O rapaz virou em direção a Cátia, levantou a mão que segurava a arma, e desmaiou.
Naquela quinta-feira abafada, Cátia contou sua história para três redes de televisão, ganhou elogios de alguns apresentadores sensacionalistas e uma casa mobiliada de um outro, que jura ela, deve ser gay. Foi a caixa de hipermercados mais importante do Brasil, pelo menos durante aquela semana. Mas para Cátia, aquilo já havia sido o suficiente.
quarta-feira, 29 de julho de 2009

A Morte


No decorrer da vida, as pessoas alimentam vários medos, mas nenhum deles é tão forte quanto o medo da morte. A certeza que passaremos por algo desconhecido e (talvez) sem volta é tão forte, que apenas alguns segundos de pensamentos sobre ela é capaz de nos arrepiar os pêlos do braço, ou nos causar um frio na espinha. Alguns se apegam na fé da existência de um paraíso, de um lugar muito melhor que este, já alguns, a certeza de que passarão por maus bocados após o último suspiro lhes tiram o sono. Bianca nunca perdeu muito seu tempo pensando na morte, afinal, ela ainda era muito jovem, e pessoas jovens só morrem, na sua concepção, quando pisam feio na bola. Era assim que ela mantinha sua relação com a "dona da foice": se preocupava em não pisar feio na bola. Não usava drogas em excesso, se confessava uma vez por ano, após acumular uma boa quantia de pecados vergonhosos, que certamente faziam enrubescer a face do padre que a ouvia, mantinha uma boa alimentação, mesmo comendo muita comida congelada, sempre optava por produtos que continham dez vitaminas e sais minerais, mesmo sem saber o que realmente aquilo significava, e acima de tudo, tratava muito bem os idosos. Tinha a certeza que quando fazia uma boa ação para algum velho, algumas más ações eram apagadas do seu "livrinho da vida". No ônibus, sentava-se no acento preferencial, só para ter o prazer de levantar-se e ceder o lugar para alguma velhinha, que obviamente deverá exalar um cheiro de leite de rosas ou talco. Se no final de semana tivesse cheirado algumas carreirinhas de cocaína, ou transado com alguns caras, dos quais não se lembra nem o nome, segunda-feira lá estava ela, com um sorriso quase publicitário no rosto, fazendo questão que alguém com mais de 70 anos se sente no seu lugar. E assim levava a vida, livrando-se dos pesos que a levariam para baixo, e conquistando alguns outros, para que ela não vá para cima rápido demais.O alarme do celular fez com que ela desse um pulo da cama, batendo a cabeça na cabeceira. Não conseguiu descobrir se a dor de cabeça que sentia, era por culpa da cabeçada, ou das latas de cerveja que havia tomado a noite anterior. Já estava atrasada para o trabalho, e se não tivesse fedendo a cachaça, iria sem tomar banho mesmo. Seu cabelo sempre fica incrivelmente bom quando estava sujo. Quando saiu do banho, sua mãe ligou no seu celular, mas a garota não estava muito afim de ouvir algumas reclamações e não atendeu. Ouviu a mensagem de voz alguns minutos depois, e se deu conta que era seu aniversario, sua mãe havia ligado exatamente para isso, para parabenizá-la. Sentiu um aperto no coração por não ter falado com a velha, mas deu de ombros. Foi sentada a viagem inteira, pois como não se lembrava de nada da noite anterior, não se sentia culpada, portanto, não precisaria fazer uma média com Deus. Chegou na agência com 40 minutos de atraso e foi recebida pelo seu chefe, parado na frente do seu computador, com os braços gordos cruzados, apoiando-os na protuberante barriga, visivelmente dura de tanto chopp. O homem que mantinha um bigodinho sem vergonha começou a desenrolar o seu sermão, claramente decorado e ensaiado. Bianca começou a reparar que os pêlos daquela taturana morta sob seu lábio superior estava amarelando, obviamente pelo uso excessivo de nicotina, e que enquanto falava, gotas de saliva se acumulavam no canto da boca, criando uma espécie de espuma viscosa. A moça, que já não se sentia bem do estômago, começou a enjoar. Começou então a pensar em outra coisa, tentar mudar seu foco de concentração, se não seria bem possível que vomitasse no mocassim gasto de seu patrão. Evidente que naquela situação, Bianca mudou demais seu foco de visão, pois quando se deu conta, o homem, que antes só tinha as bochechas rosadas, agora estava todo vermelho, beirando a histeria. Ele a mandou imprimir os projetos, aos berros. Ela sugeriu que ele enfiasse os projetos no rabo. Foi demitida.Caminhou dois quarteirões ainda sem rumo, e quando foi acender seu terceiro cigarro daquele curto espaço de tempo, notou que eles haviam acabado. Avistou uma banca de jornal do outro lado da rua, e se sentiu aliviada. Precisava fumar mais um cigarrinho. Quando estava alcançando a metade da rua, um carro, que Bianca nas conseguiu reconhecer e concluiu que era importado, virou a rua e veio em direção a garota. Ela sempre achou que numa ocasião dessas, ela seria agíl, conseguiria se esquivar, ou correr para outro lugar, mas suas pernas travaram, seu sangue congelou, e suas pupilas se dilataram tanto, que seu olhos castanhos, pareceram negros. A freada chamou a atenção das pessoas na rua, e os xingamentos do motorista fizeram alguns curiosos dos prédios vizinhos colocarem as cabeças para fora. Ela não teve reação nenhuma. Assim como falam por ai, viu um filme da sua vida em poucos segundos, teve a certeza que iria morrer. Mas não morreu. Terminou de atravessar a rua, ainda com as pernas bambas e sentou. Ficou ali sentada por quinze minutos, talvez quarenta, não se deu conta do tempo. Comprou outra carteira de cigarros, e os tragava com a mesma ânsia que os adolescentes tem quando fumam um cigarro escondido dos pais no banheiro da empregada. Ficou vagando pela cidade, vendo vitrines, e lá pelo fim da tarde, um garoto de uns onze anos veio lhe pedir um cigarro. Embora ela não fosse nada careta, achou um absurdo um garoto de onze anos fumar. Quinze anos é uma idade boa, mas onze é praticamente uma criança. Recusou-se a dar, e o pequeno garoto, que parecia uma criança, tirou um faca do moletom sujo e a ameaçou. Arrancou a bolsa de seus braços com uma incivilidade tão latente, que Bianca não teve chance se quer de gritar por ajuda. Voltou a ficar com as pernas trêmulas, estava sem dinheiro e sem cigarros. Concluiu que já era hora de voltar para casa. Quando chegou no seu apartamento, notou que a porta estava aberta. Um sensação de medo e dúvida se misturaram dentro dela. Será que na correria havia saído e deixado a porta aberta, ou outro bandidinho arrombara a porta? Com cautela, e procurando fazer o menor barulho possível, deu um passo para dentro do apartamento. Já estava escuro e ela não podia enxergar nada. Tateou a parede em busca do interruptor, e ouviu barulho no final da sala. Normalmente, quando acorda durante a noite para beber água, Bianca consegue passear pela casa inteira sem esbarrar em nada, e se precisar acender a luz, a mão vai certeiramente ao interruptor, mas naquela ocasião, estava difícil de encontrá-lo. Sentiu seu coração batendo rápido, fazendo com que seus tímpanos vibrassem no mesmo ritmo. Finalmente encontrou o interruptor e quando acendeu a luz cerca de vinte pessoas, entre elas sua mãe, estavam aglomerados na sua pequena sala. Haviam balões coloridos e uma faixa que dizia "feliz aniversario". Um uníssono grito encheu toda a sala, fazendo o silêncio desaparecer. Bianca não ouviu o que as pessoas gritaram. Um dor aguda atingiu seu peito. Foi levantar a mão, num movimento instintivo de quem sente dor em algum lugar, e notou que seu braço já não a obedecia. Estava formigando. A dor aumentou, e tudo foi escurecendo, e o silêncio, aos poucos, foi caindo sob aquele local, como uma fina neblina, que aos poucos, vai molhando todas as folhas do jardim.Começou a voltar a si, estava se sentindo bem. Na realidade, estava se sentindo ótima. Algumas pessoas ainda estavam no seu apartamento, mas Bianca notou algo diferente nelas. Estavam tristes. Estavam chorando. Perguntou o que havia acontecido, mas todos a ignoravam, parecia que ela não estava ali. Olhou para o chão, e de alguma maneira, se viu ali, deitada. Não conseguiu raciocinar, não entedia como aquilo era possível. Cobriram seu corpo com uma manta que estava sob o sofá. Como se seu cérebro voltasse a funcionar, fazendo todos os pensamentos emergirem de um só vez, concluiu: estava morta.Assistiu os médicos retirarem seu corpo, e os amigos aos poucos irem embora. Ficou chocada quando Marcelo, um amigo do seu emprego anterior, abriu sua geladeira e levou duas garrafas de vodka embora. Estava certo que agora ela era uma alma penada, mas esperava pelo menos um pouco de respeito. Desejou que ele morresse também, e de uma morte mil vezes mais dolorosa que a dela. Ficou andando pela sala, imaginando quando iria para o céu, ou para o inferno. Mas nada aconteceu. Tentou sair daquele lugar, estava começando a ficar deprimida, mas não conseguiu. Alguma coisa a impedia de sair. Depois de três dias, parou de tentar. Aceitou que passaria o resto de vida ali, ou melhor, o resto de sua pós-morte. As pessoas quando morrem, devem ficar presas no local onde morreram - disse a garota quando olhava para o espelho, que agora não tinha mais o seu reflexo.Passou-se algum tempo, Bianca observou homens de macacão retirarem seus moveis, e pintarem as paredes. Realmente aquele lugar estava precisando mesmo de um tapa, mas ela nunca tinha tempo, nem dinheiro para fazer reformas. Acompanhou a mudança de três famílias para seu "ap", e sinceramente não gostava da ideia de ver estranhos morando no lugar que era dela. Não se sentia mal, mas também não se sentia bem. Arrependeu-se de ter viajado de ônibus em pé tantas vezes, se soubesse que seria assim, não teria cedido seu lugar, nem sido simpática com tantos esclerosados.Ouviu então um barulho no quarto. A solidão já tinha tomado conta dela, e qualquer ruído já era um esperança. Caminhou lentamente para o cômodo. Estava quente lá dentro. Um calor insuportável. Seus pés, descalços, já não suportavam o calor que saia por entre os tacos de madeira. Não havia cama, nem algum móvel onde pudesse subir e se proteger. A ardência foi aumentando, tomando conta de todo seu corpo. Um som estranho foi penetrando em seus ouvidos, cada vez mais alto. Pensou em sair do quarto, mas ja era da tarde. O som estava cada vez mais próximo. Bolhas surgiram nos seus braços e pernas.Sentia muita dor. Muita dor. Era o inferno. Para lá que ela estava indo. O som aumentou... Ela deu um pulo e bateu com a cabeça na cabeceira da cama. Estava suada e ofegante. Atendeu sua mãe no celular, e deixou claro que não queria festas surpresas. Era seu aniversário e ela não foi trabalhar naquele dia. Achou melhor assim.
sexta-feira, 1 de maio de 2009

Talvez Domingo




Era sábado. Finalmente era sábado. Disso ele sabia muito bem, uma porque sua mãe não lhe acordou logo pela manhã com a calça azul do uniforme na mão, e outra porque o programa que estava passando na TV só era transmitido aos sábados. Acordar com aquela menininha de voz estridente gritando na TV realmente irritava Lucas. Grande coisa, ela decora tudo – dizia o garoto sempre que ouvia alguém elogiando a pequena gênia. No fundo, no fundo, ele sabia que mesmo tendo ela 6 anos, e ele 7, nitidamente ela era bem mais inteligente que ele.
O garoto odiava crianças que fossem ou parecessem mais espertas. Na escolinha sempre fazia amizades com as crianças menos ativas, assim poderia exibir com arrogância todos seus conhecimentos, como o Jô faz com seus entrevistados. Aliás, Lucas odiava o Jô Soares. Não pela inteligência, mas pelo peso. O menino acreditava que não existe maior burrice numa pessoa do que a gordura, que se você é burro, não saberá comer direito, então engordará. Também odiava a maneira esquisita como os gordinhos corriam, e a facilidade com que eles suavam. Jaime, um garoto da sala da frente não podia brincar cinco minutos de pique-bandeira que já estava todo molhado, ofegante. Humilhante. Lucas tinha, na realidade, nojo de gente gorda. Tinha ódio de gente mais inteligente que ele, e nojo de gente gorda. Foi devido a esse nojo que certa vez, ele fez xixi dentro da lancheira de Jaime.
Sua mãe apareceu no quarto, ela ainda estava de camisola e segurava uma prato com um sanduíche numa mão, e um copo de suco na outra. Seus cabelos compridos estavam soltos e sob os ombros uma toalha de banho vermelha ainda seca fez com que Lucas se desse conta de quão sua mãe era parecida com Jesus Cristo. Preferiu não comentar nada, sua mãe não encararia aquilo como elogio.
O garoto deu uma grande mordida no sanduíche, e foi obrigado a dar um gole no suco para umedecer aquele bolo de pão e queijo que se formou na sua boca. Engraçado, Jesus transformou água em vinho, caminhou por cima do mar, fez um aleijado andar, e deixou os homens pregarem ele na cruz? Burro! – Concluiu ele, fazendo um esforço para que a pasta que se formara na sua boca descesse garganta abaixo.
No banheiro do final do corredor o chuveiro foi ligado, e instantaneamente o menino perdeu o apetite. Teria que tomar banho também, logo que sua mãe terminasse o dela. Como toda criança, ele odiava tomar banho, e pra variar, achava burrice tomar banho em dias que você não suou ou não vai sair de casa. Logo se tranqüilizou e terminou de comer. Havia decidido que apenas molharia o cabelo no bidê, passaria um perfume, e diria à mamãe que tomou banho.
Levantou da cama, espalhando migalhas de pão por todo o carpete do quarto. Às vezes, o difícil menino fazia questão de sujar a casa, ele se divertia ao ver Mara, a empregada, limpando tudo com ar de desespero. Ela era negra e burra. Para Lucas, todos os negros são burros, com exceção de Michel Jackson, que foi inteligente o bastante para comprar pele de branco. Jogou o que sobrou do suco dentro de uma gaveta, e riu ao imaginar a cara de Mara quando visse aquilo.
Olhou pelo corredor, e ainda podia ouvir o barulho da água do chuveiro batendo no piso do banheiro. Voltou para o quarto e se deitou na cama. Ficou olhando para o teto, enquanto ouvia a menina chata pela TV. Imaginava o que se passa na cabeça de uma criança que prefere ganhar um celular a um playstation. Só podia ser burrice.
O tempo foi passando, os olhos do garoto foram ficando pesados, e a voz chata da menina foi aos poucos ficando distante. Ele adormeceu. Sonhava que estava sendo cozido pelo Pernalonga, numa grande panela, dessas que os canibais cozinham as pessoas. Junto dele, Barack Obama brincava com as bolhas que começavam a se formar no fundo da panela. Avistou Jesus, ele vestia uma túnica idêntica a toalha que sua mãe usava, e pensou, no próprio sonho, o quão eles são parecidos mesmo. O homem Santo se aproximou daquele garoto, colocou sua mão naquela pequena cabeça, e a empurrou para dentro da água. Lucas pulou da cama. Sentia uma forte vontade de chorar, percebeu que estava molhado, e que no lugar onde estava seu miúdo corpinho, agora havia uma grande rodela amarela no lençol. Sentia-se estranho. Era apenas uma criança, e precisava de sua mãe. Gritou por ela três vezes, e como ela não apareceu, colocou a cabeça no corredor e pode ouvir o chuveiro, que ainda estava ligado.Nunca havia se sentido tão sozinho assim. Sentia-se vazio. Encostou as costas na cabeceira de sua cama, e voltou os olhos para TV. Percebeu que a menina chata dera lugar ao homem que usava o microfone engraçado no peito. Ainda ouvia o chuveiro ligado, mas já era domingo, e ele não sabia disso.
quinta-feira, 5 de março de 2009

Sapatos e guarda-chuvas




Aquele silêncio ensurdecedor estava matando-o. A caixa metálica tinha mesmo o poder de transformar as pessoas em zumbis. Ele se sentia assim, um zumbi. Dentro e fora do elevador. O alívio de sair do trabalho lhe causou até uma pequena vertigem, assim que colocou o pé na rua e sentiu a primeira brisa de monóxido de carbono penetrar nos seus pulmões. Talvez esse tenha sido o real motivo para a vertigem.
Afrouxou a gravata e enfiou o blazer na mochila, que destoava descoladamente do seu figurino. Com passos rápidos ele caminhava ardilosamente entre aquela multidão de rostos desconhecidos.
Ele era um homem sozinho, e se incomodava com isso. Sempre quando ia à padaria comprava dois pães, mesmo sabendo que comeria somente um. Não queria que pensassem nele como “o rapaz que toma café sozinho”. Fazia tanto tempo que ele não ia ao cinema, que o último filme que havia assistido em grandes proporções já estava sendo transmitido na sessão da tarde. Tinha parado de viver. Estava apenas sobrevivendo. A única coisa que diferenciava seus dias da semana eram os programas de TV, que por motivo nenhum, deixava de assistir. Sentia-se como Bill Murray em Feitiço do Tempo, mas sem o romance.
Tropeçou numa lasca de concreto solta da calçada, foi um destes tropeços que mais se parecem com um pequeno passo de dança, mas já foi o suficiente para lhe corar a face. Não entendia o motivo de sentir-se envergonhado diante de pessoas que provavelmente ele nunca mais iria ver. Pessoas que nunca saberiam o seu nome, nunca saberiam se ele prefere inverno ou verão, nunca saberiam que ele detesta chocolate.
Uma garoa bem fina começou a cair. A imagem daquelas pequenas gotas de água sendo atingidas pelos faróis dos carros era linda. Pareciam milhões de fadinhas, caindo do céu. Milhões de “sininhos” que caiam desconsoladas pela indiferença de Peter Pan. Apressou os passos, mas a chuva acompanhou sua ansiedade, e aumentou. Ainda caminhando abriu a mochila, enfiou a mão no bolso maior, e tirou lá de dentro mais uma porção de decepção. Esquecera o guarda-chuva. Teve então de parar em algum lugar para se proteger. Se molhasse aquele sapato, teria quer ir trabalhar usando chinelos no dia seguinte, e certamente isso não seria muito bem visto pelos seus supervisores. Encontrou um ponto de ônibus. Por incrível que pareça, vazio. Não pode sentar, já que os acentos estavam todos molhados, mas ficou ali de pé, observando.
Uma moça de pele bem branca e bochechas bem rosadas, talvez devido a corrida que ela tenha feito para fugir da chuva, entrou também sob o ponto. Tirou uma sacola plástica, dessas de mercado, da bolsa e com ela forrou um acento, e sentou. Ele olhou para ela, e ela sorriu. Pegou uma caneta, e com uma agilidade que só as mulheres possuem, enrolou o cabelo e cravou aquela bic entre os fios, prendendo-os assim. Retirou os sapatos dos pés, e com um jornalzinho que distribuem no metro, começou a tentar seca-los.
- Se esses sapatos não secarem, amanhã vou ter que trabalhar de chinelo – disse ela, rindo com tamanha feminilidade que fez com que ele sentisse seu rosto queimar.
Ela era uma mulher bonita, e nitidamente comunicativa. Morava sozinha desde os dezessete anos, e não esqueceu o guarda-chuva em casa, como ele. Ela não tinha guarda-chuva. Sempre que alguma amiga a alertava sobre o tempo, tentando evitar um banho desnecessário, ela respondia que não era feita de açúcar, que tomar banho de chuva faz parte da vida. Mas naquela ocasião, eram os sapatos que corriam perigo.
Ficaram os dois ali, nos primeiros minutos em silêncio. Depois ela puxou um assunto qualquer, e a conversa começou a se desenrolar. Ela o fez rir. E ele a fez corar.


O mundo poderia acabar ali, mas aquela chuva deveria continuar. Tinha que ser assim. Quando a chuva parasse, cada um voltaria para o seu destino, para a sua vida, e ele não queria isso. Mas a chuva era uma dessas chuvas rápidas, de verão. Com a velocidade que começou a molhar o asfalto, parou. Os pássaros começaram a sair de seus ninhos, e as fadas voltaram para o lugar delas, onde ninguém sabe onde fica.
O casal se despediu com um aperto de mão frio, embora estivessem quentes por dentro.
Ele chegou no seu pequeno apartamento, jogou fora seu guarda-chuva e não ligou a TV.
Ela dormiu, desejando que o dia seguinte fosse chuvoso. E foi.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O Boto




Já havia se passado quatro horas de viagem, e tudo o que Rita podia ver era o nada. A mesma vista que tinha naquela panorâmica janela do ônibus no inicio da viagem, continuava a mesma. As vezes uma vegetação rasteira mudava a paisagem, mas tudo parecia sempre igual. Sempre a mesma coisa, assim como era sua vida naquela precária cidade, que agora, deixava para trás. Não era só sua cidade natal que deixava para trás, mas também seus pais, seus quatro irmãos, e os poucos amigos que havia conquistado nos seus dezenove anos de vida. O sacrifício valia a pena, e como dizia uma frase do calendário do ano passado – “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Rita nunca conseguiu entender bem essa frase, mas tinha a certeza que ela a confortava, pelo menos um pouco.
A poltrona, que até três horas atrás a deixava bastante confortável, agora a incomodava. Sua coluna já mostrava sinais de fraqueza, e a moça já se questionava se deitar no corredor do ônibus chamaria muito atenção. A fome a apertava o estômago, mas sabia que tinha pouco dinheiro, e preferiu guardar o pão que sua mãe fez para a viagem para comer somente quando chegasse a cidade, ela realmente não estava disposta a compartilhar o pão com o senhor que sentava ao seu lado. Sentiu-se um pouco mesquinha, lembrou-se de Jesus, que dividiu um pão entre doze pessoas, mas duvidou que o Messias fosse capaz de dividir o mesmo pão entre quarenta e duas, quarenta e três com o motorista. Desabotoou a fivela da sua sandália de couro, já surrado com o tempo, e colocou os pés no banco. Assim sentiu-se mais confortável, suas coxas faziam pressão sob seu estômago, enganando a fome que sentia, e a posição esticou um pouco sua coluna, fazendo-a estralar na primeira respiração profunda. A pequena mala preta de mão que carregava sob o colo foi colocada no chão, mas antes, Rita retirou de lá um caderno espiral, que já não tinha capa, mas mesmo assim com muitas orelhas. No caderno, sua única segurança: o endereço de sua melhor amiga que havia deixado a cidade há dois anos. Cecília era uma moça tão sonhadora quanto Rita, talvez por isso as duas fossem tão próximas. Eram tão amigas que menstruavam juntas, desde a primeira menstruação. Quando essa deixou a cidade, Rita sentiu-se tão desconsolada que até pensou em se jogar no riacho que havia nos fundos de sua casa, mas decidiu que iria trabalhar para juntar dinheiro e ir atrás da amiga. Era isso que estava fazendo. Acreditava que passaria sua vida ao lado de Cecília, e Cecília acreditava no mesmo.
O senhor que sentava a sua frente reclinou a poltrona, deixando assim um espaço tão pequeno, que se Rita espirrasse poderia ter um traumatismo craniano pela pancada que daria no encosto da cabeça. Reclinou a dela também, o que fez a senhora que sentava atrás reclinar também, assim foi se fazendo, como peças de dominó, um fazendo o outro reclinar sua poltrona, até o último passageiro. Rita dormiu, sonhou que já estava na cidade, e que ela e Cecília riam juntas de alguma coisa que havia acontecido. Sonhou que estava novamente no quarto da amiga no dia que, juntas, cortaram o cabelo uma da outra. Sonhou com a felicidade dos seus pais ao abrirem a primeira carta que ela mandara, uma carta gorda, com muitas notas de dinheiro dentro.
Foi então despertada por uma senhorinha baixinha, de pele bem morena, que tinha os cabelos tão bem presos no alto da cabeça que passava a impressão de que estava esticando todos os músculos da face. Excitada que havia chegado ao seu destino, que encontraria em alguns minutos a amiga que há anos não falava, pegou sua mala e desceu rapidamente do ônibus, que assim que Rita colocou os pés no chão frio de cimento, daquela cidade tão fria, partiu numa arrancada, talvez para outro destino, para levar outras pessoas aos seus respectivos sonhos.
A rodoviária encantou a jovem que tinha tantos planos em mente. As pessoas eram tão bem vestidas, e caminhavam como os cavalos treinados que vira uma vez na romaria. Parou um pouco e se encostou num grosso pilar, distante daquela apressada multidão. Já era noite, e Rita começava a sentir o frio na barriga que antes era excitação, se transformando em medo. Abriu a mala a procura do caderno, e uma onda de gelo frio, paralisante tomou conta de todo seu corpo. Esquecera o caderno dentro do ônibus. Quis desabar no choro, mas já que teve a coragem de sair de uma cidade tão pequena e se arriscar ali, naquela grande metrópole, conteve-se. Foi caminhando, contornando a calçada da rodoviária.
Um jovem bem vestido, certamente percebendo a situação da moça, parou seu carro e conversou com a garota. Rita explicou-lhe o que havia acontecido, e prontamente ele a convenceu a aceitar uma carona. Te levo até a delegacia de policia, e pelo nome completo de sua amiga, podemos descobrir seu endereço – disse o jovem, antes de esboçar um dos sorrisos mais bonitos que ela já vira, sem ser os dos artistas da TV.
A garota, mesmo com medo entrou no carro do rapaz, segurando sua mala preta, e tendo a certeza que assim que chegassem na delegacia, faria questão de dar todo o seu pão para aquele bondoso rapaz.


Cecília esperou ansiosa a amiga durante a noite inteira, e com o passar dos anos, acostumou-se a menstruar sozinha.
sábado, 3 de janeiro de 2009

A saga de Bolly




A esteira estava cheia, Bolly já podia ver, eram milhões. Milhões de pequenas garrafas verdes com seus líquidos tremulantes. Enfileiradas com matemática e higiene. Escuro.
Bolly estava nervosa, se tivesse um coração dentro do seu corpo cilíndrico, provavelmente ele estaria acelerado. Em instantes um turbilhão de movimentos bruscos chacoalharam os sentimentos de Bolly. Parecia que ia explodir e naquela circunstância, isso era bem possível. Luz. Tudo o que se podia ver era luz. Estou morta? – pensava Bolly temerosamente. Mal se acostumara com aquela intensa claridade e foi apanhada. Sentiu uma mão quente a sua volta e pode perceber que tinha companhia. Não estava mais sozinha naquela empreitada. Escuro.
- Para onde estamos indo?
- Para onde todas nós vamos, meu bem! Para o estrelato!
As horas seguintes foram as mais terríveis da vida de Bolly. Depois de ficar horas dentro de um lugar escuro, rolando incessantemente e quase sendo sufocada por uma grande coberta de plástico fino, foi colocada deitada num lugar frio. Muito frio. Agora estou morta! – Se convencia Bolly. O estresse era tanto, que Bolly estranhamente caiu no sono, estava cansada, e o silêncio quase perturbador a ajudou a relaxar.
Sentiu uma dor forte na cabeça, foi virada em diferentes ângulos, abraçada por diferentes mãos, e despejava em pequenas parcelas alguns mililitros de sua vida. O cheiro triste do tutti-frutti invadia a mesa, semelhante ao cheiro de pipoca na porta do cinema. E aos poucos, como se fosse algo muito rotineiro, como se fosse uma das clássicas torturas chinesas, foram assim, bebendo toda a sua alma.
Bolly estava fraca. Sentia-se enjoada, como se tivesse acordado numa quarta-feira de cinzas.
Estava novamente envolta à coberta de plástico grudento, mas agora, haviam mais quatro feito ela, esmagadas, como trabalhadores no metrô às seis da manhã. Foram separadas uma a uma, e jogadas novamente na esteira. Bolly embora vazia, sentia-se cheia, cheia de esperança e felicidade. Era muito bom, naquelas alturas, se sentir a caminho de casa novamente. A esteira corria, aos poucos garrafas e mais garrafas iam caindo num grande buraco de metal.
É fogo! É fogo! Vamos morrer! Não posso morrer, ainda sou jovem! Jovem! – Gritou uma garrafinha de 250 ml segundos antes de ser atirada buraco abaixo.
O pânico tomou conta daquelas pequenas criaturas. Bolly pôde ver toda sua vida perante seus olhos. Sentia uma sensação estranha. Sabia que iria morrer, em poucos segundos. O buraco se aproximava, e a única saída era orar, já que como estava seca, Bolly havia sido impedida até de chorar. Uma dor aguda foi se apoderando do seu corpinho roliço. O buraco estava prestes a engoli-la. Escuro.
A esteira estava cheia, Bolly já podia ver, eram milhões. Milhões de pequenas garrafas verdes com seus líquidos tremulantes. Enfileiradas com matemática e higiene. Escuro.