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quinta-feira, 30 de julho de 2009

A quinta




Nunca conheci ninguém que tivesse o sonho de ser atendente de loja de conveniência, ou monitor de buffet infantil. Não que essas profissões não sejam importantes (por mais que no fundo, sabemos que realmente não são), mas porque todo mundo nutre um sonho que mude nossa maneira de viver, que mude o modo como vemos o mundo e mude também, o modo como o mundo nos vê. Ser caixa de supermercado também não era o que Cátia esperava para sua vida. Aliás, ela mesma vivia se corrigindo a respeito de sua profissão. Era caixa de hipermercado. Acredito que essa pequena mudança já a fazia se sentir um pouquinho mais importante, ou menos descartável. Ela era uma funcionaria exemplar. Nos seus quatorze anos de profissão, só chegou atrasada uma vez, devido a uma greve do metrô, e faltou apenas três vezes, quando teve que viajar para a Paraíba para dar seu último adeus a sua mãe, que morrera de câncer de estômago. Nessa ocasião, usou o dinheiro que estava guardando para a compra de uma geladeira nova em passagens de avião. Não queria faltar muitos dias e deixar o pessoal do hipermercado na mão. Mas no fundo sabia que qualquer estoquista poderia ocupar o seu lugar. Cátia era capaz de registrar 47 produtos em menos de três minutos. Ela treinou muito para conseguir tal feito. Mas naquela quinta-feira abafada, aquela mulher com a pele já marcada pelo sofrimento, não estava em um dos seus melhores dias. Registrou o mesmo produto duas vezes e teve que chamar o gerente para cancelar o item, e deixou que um vidro de azeitonas escorregasse de sua mão e caísse sob a esteira de borracha, quebrando-se e espirrando aquela água salgada no vestido de uma dona de casa de classe média. A mulher sentiu-se tão ofendida e tão constrangida pelo cheiro de oliva que passou a exalar, que saiu do hipermercado mais rápido que Cátia não teve tempo nem de pedir desculpas.
Quando ainda era uma menina, quase adolescente, fez uma viagem com seu pai a uma cidadezinha vizinha, e foi nessa viagem que Cátia viu uma TV pela primeira vez. No primeiro momento ficou completamente extasiada com o fato de tanta gente caber dentro daquela caixa, mas alguns segundos depois, a pequena garota que vestia um vestidinho de chita especialmente costurado pela sua mãe para essa viagem, transbordou de alegria. Foi paixão a primeira vista. Nos três anos seguintes, ela nunca mais visitou a tal cidadezinha, e também nunca mais viu uma televisão. Até que uma família vinda de Belo Horizonte abriu uma padaria na rua de sua casa, e nessa padaria, uma pequena TV de quatorze polegadas foi instalada. Desde então, Cátia não saiu de lá. Assistia a todos os programas, e muitas vezes, seu Geraldo tinha que manda-la para casa para poder fechar o estabelecimento. Sua mãe dizia que ela já estava virando uma moça, que já era hora de arrumar um namorado e tocar sua vida, mas Cátia já estava apaixonada pelo Tarcisio Meira.
Foi nessa época que ela decidiu o que queria para sua vida. Queria ser atriz, igual Regina Duarte. Quando fez dezoito anos mudou-se para São Paulo, dizendo que iria estudar para ser médica, mas na verdade, a medicina só entraria para sua vida se fosse essa a profissão de sua personagem na novela das oito. Chegando em São Paulo, a frieza dos prédios a assustaram, e sua vida tomou outro rumo. Já havia perdido as esperanças, mas elas foram reanimadas há três meses atrás por um anúncio na TV. Enquanto passava sua roupa em cima da mesa da cozinha forrada com uma toalha de banho, Cátia ouviu um apresentador narigudo de cabelo engraçado anunciar um concurso, no qual seria escolhida uma mulher para integrar o elenco da nova novela da emissora. Ela escreveu sua carta, e junto, também enviou uma foto de corpo inteiro,como mandava o regulamento. A fotografia havia sido feita há três anos atrás, no casamento de um amigo do hipermercado, mas Cátia não achava que havia mudado muito desde então, e enviou aquela mesmo. Particularmente, era a fotografia dela que mais a agradava. Usava um longo vestido lilás,com uma echarpe longa que lhe caia sobre os ombros. Parece uma estrela de cinema – disse Gustavo, o garoto que trabalha na sessão de carnes.
Na última quarta-feira, Cátia recebeu um telegrama da produção do programa, que agradecia o interesse dela em participar da seleção, mas ela não era o perfil procurado. Este era o motivo do desânimo da caixa naquela quinta-feira abafada. Esperou com tamanha ansiedade receber uma resposta do programa, que não imaginou que se quer poderia participar da seleção. A sensação que sentiu foi semelhante a que teve quando ainda criança, seu pai havia prometido comprar um litro de refrigerante na noite de natal. A garota ficou sentada na calçada de casa esperando seu pai chegar do trabalho, trazendo aquela bebida que era tão gostosa, mas tão fora do orçamento da família, mas quando viu seu pai apontar no inicio da rua de mãos vazias, entrou na cozinha e preparou um suco em pó para a família. Aprendeu a se contentar, aprendeu a viver sem ter o que queria. Agora, ela tinha a certeza que teria que se contentar em ser caixa de hipermercado, assim como fez com o suco em pó...
Seu turno estava próximo do final, e ela não via a hora de colocar suas roupas e ir para casa. A pele de seu rosto tinha um brilho devido as gotas de suor que insistiam em brotar na sua testa, suas costas doíam, e seu coração, bom, este, Cátia tinha certeza que já havia parado de bater na noite anterior,quando abriu aquele envelope idiota.
Um rapaz trajando bermudas e camiseta chegou ao caixa que ficava do lado do de Cátia. Ela estava numa posição que, os clientes do caixa que ficava a sua direita, ficavam de costas para ela. Seu caixa estava vazio, e ela contava os minutos para fechá-lo e ir para casa. Observou o rapaz e notou que ele não tinha nada nas mãos. Imaginou que ele compraria essas coisinhas que os supermercados colocam na boca do caixa, que quando olhamos para elas, sentimos uma necessidade muito grande de adquiri-las. Apostou consigo mesma que este rapaz tinha cara de quem compraria preservativos. Que iria para algum baile mais tarde e talvez, encontraria uma companhia. Inclinou-se um pouco para o lado para poder ver o que o rapaz pegaria, mas notou que agora, o rapaz tinha sim algo nas mãos. Uma arma. Tudo aconteceu muito rápido. De canto de olho, viu Claudete com a boca mais aberta que de costume, com os olhos arregalados, fixos na arma do rapaz. Seu Jair, o gerente, estava logo atrás de Claudete e cometeu o erro de tirar o celular do bolso. O rapaz apontou a arma para o homem e apertou o gatilho. O barulho ecoou pelo hipermercado todo, e até Marcos, que trabalha no estoque de eletrônicos, do outro lado daquele grande galpão, disse que pode ouvir o estrondo. O barulho assustou Cátia, e num ato instintivo, pegou o vidro de azeitonas que ainda estava no lixo ao seu lado e cravou os cacos pontiagudos que estavam presos na rosca da tampa, no pescoço do rapaz. O sangue esguichou alguns metros, manchando a capa da Veja e da Caras que estavam na prateleira. O rapaz virou em direção a Cátia, levantou a mão que segurava a arma, e desmaiou.
Naquela quinta-feira abafada, Cátia contou sua história para três redes de televisão, ganhou elogios de alguns apresentadores sensacionalistas e uma casa mobiliada de um outro, que jura ela, deve ser gay. Foi a caixa de hipermercados mais importante do Brasil, pelo menos durante aquela semana. Mas para Cátia, aquilo já havia sido o suficiente.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi td bem? ja li alguns textos seus no textolivre e acho todos muito bons.esse me fez chorar. tem msn? sou tua fã.

Line disse...

K!! q bacana!! como eu n tinha lido antes???
Adorei esse..fiquei muito imaginando o take da camera pegando o sangue escorrendo da capa das revistas... é.. eu sempre vejo as coisas em forma de takes.. acho q é mal de quem faz radio e tv! rsss
Enfim... queria ler os outros mas to saindo pq tenho uma festinha de uma tal de Amanda pra ir!rsss

beijoooooo

Thiago Gacciona disse...

Curti muito a narrativa que você está fazendo. esse dois últimos textos não dava para parar de ler. E os finais estão cada vez mais surprendentes.

"Esse me fez chorar. tem msn? sou tua fã."
O cara tá ficando famoso!!! Rs...

Abraços...

Keep Writing!!!

Anônimo disse...

ai K-to dai q vc já faz mais de mês e nada de novo por aqui.....

quando resurgirás?

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E eu te pergunto: E dai?