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sexta-feira, 1 de maio de 2009

Talvez Domingo




Era sábado. Finalmente era sábado. Disso ele sabia muito bem, uma porque sua mãe não lhe acordou logo pela manhã com a calça azul do uniforme na mão, e outra porque o programa que estava passando na TV só era transmitido aos sábados. Acordar com aquela menininha de voz estridente gritando na TV realmente irritava Lucas. Grande coisa, ela decora tudo – dizia o garoto sempre que ouvia alguém elogiando a pequena gênia. No fundo, no fundo, ele sabia que mesmo tendo ela 6 anos, e ele 7, nitidamente ela era bem mais inteligente que ele.
O garoto odiava crianças que fossem ou parecessem mais espertas. Na escolinha sempre fazia amizades com as crianças menos ativas, assim poderia exibir com arrogância todos seus conhecimentos, como o Jô faz com seus entrevistados. Aliás, Lucas odiava o Jô Soares. Não pela inteligência, mas pelo peso. O menino acreditava que não existe maior burrice numa pessoa do que a gordura, que se você é burro, não saberá comer direito, então engordará. Também odiava a maneira esquisita como os gordinhos corriam, e a facilidade com que eles suavam. Jaime, um garoto da sala da frente não podia brincar cinco minutos de pique-bandeira que já estava todo molhado, ofegante. Humilhante. Lucas tinha, na realidade, nojo de gente gorda. Tinha ódio de gente mais inteligente que ele, e nojo de gente gorda. Foi devido a esse nojo que certa vez, ele fez xixi dentro da lancheira de Jaime.
Sua mãe apareceu no quarto, ela ainda estava de camisola e segurava uma prato com um sanduíche numa mão, e um copo de suco na outra. Seus cabelos compridos estavam soltos e sob os ombros uma toalha de banho vermelha ainda seca fez com que Lucas se desse conta de quão sua mãe era parecida com Jesus Cristo. Preferiu não comentar nada, sua mãe não encararia aquilo como elogio.
O garoto deu uma grande mordida no sanduíche, e foi obrigado a dar um gole no suco para umedecer aquele bolo de pão e queijo que se formou na sua boca. Engraçado, Jesus transformou água em vinho, caminhou por cima do mar, fez um aleijado andar, e deixou os homens pregarem ele na cruz? Burro! – Concluiu ele, fazendo um esforço para que a pasta que se formara na sua boca descesse garganta abaixo.
No banheiro do final do corredor o chuveiro foi ligado, e instantaneamente o menino perdeu o apetite. Teria que tomar banho também, logo que sua mãe terminasse o dela. Como toda criança, ele odiava tomar banho, e pra variar, achava burrice tomar banho em dias que você não suou ou não vai sair de casa. Logo se tranqüilizou e terminou de comer. Havia decidido que apenas molharia o cabelo no bidê, passaria um perfume, e diria à mamãe que tomou banho.
Levantou da cama, espalhando migalhas de pão por todo o carpete do quarto. Às vezes, o difícil menino fazia questão de sujar a casa, ele se divertia ao ver Mara, a empregada, limpando tudo com ar de desespero. Ela era negra e burra. Para Lucas, todos os negros são burros, com exceção de Michel Jackson, que foi inteligente o bastante para comprar pele de branco. Jogou o que sobrou do suco dentro de uma gaveta, e riu ao imaginar a cara de Mara quando visse aquilo.
Olhou pelo corredor, e ainda podia ouvir o barulho da água do chuveiro batendo no piso do banheiro. Voltou para o quarto e se deitou na cama. Ficou olhando para o teto, enquanto ouvia a menina chata pela TV. Imaginava o que se passa na cabeça de uma criança que prefere ganhar um celular a um playstation. Só podia ser burrice.
O tempo foi passando, os olhos do garoto foram ficando pesados, e a voz chata da menina foi aos poucos ficando distante. Ele adormeceu. Sonhava que estava sendo cozido pelo Pernalonga, numa grande panela, dessas que os canibais cozinham as pessoas. Junto dele, Barack Obama brincava com as bolhas que começavam a se formar no fundo da panela. Avistou Jesus, ele vestia uma túnica idêntica a toalha que sua mãe usava, e pensou, no próprio sonho, o quão eles são parecidos mesmo. O homem Santo se aproximou daquele garoto, colocou sua mão naquela pequena cabeça, e a empurrou para dentro da água. Lucas pulou da cama. Sentia uma forte vontade de chorar, percebeu que estava molhado, e que no lugar onde estava seu miúdo corpinho, agora havia uma grande rodela amarela no lençol. Sentia-se estranho. Era apenas uma criança, e precisava de sua mãe. Gritou por ela três vezes, e como ela não apareceu, colocou a cabeça no corredor e pode ouvir o chuveiro, que ainda estava ligado.Nunca havia se sentido tão sozinho assim. Sentia-se vazio. Encostou as costas na cabeceira de sua cama, e voltou os olhos para TV. Percebeu que a menina chata dera lugar ao homem que usava o microfone engraçado no peito. Ainda ouvia o chuveiro ligado, mas já era domingo, e ele não sabia disso.