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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Conto de Natal






Por mais moderninhas e descoladas que sejam, todas as garotas guardam dentro de si o velho e conhecido desejo de se casarem, terem um casal de filhos, um marido bonito e atraente, e claro, muito bem sucedido. E mesmo que digam o contrário, isso é um fato. Seja a garota que toma vinho barato na calçada da Rua Augusta na madrugada quente de São Paulo, ou aquela que acorda às sete da manhã aos domingos para assistir a primeira missa da semana.
Com Vera não era diferente. Quando criança, prendia um grande pedaço de papel higiênico na tiara e saia correndo pela rua. Imaginava-se a noivinha mais bonita do mundo, e certamente com a cauda mais branca, criativa e perfumada que poderia existir. Na pequena cidade onde fora criada, todos a conheciam como a noiva da rua 41. Esse apelido sempre a satisfez e adorava ouvir as senhoras que lavavam as calçadas gritando e acenando enquanto ela corria fazendo o papel esvoaçar, entrelaçando-se com os cabelos ruivos. Mas naquela idade, Vera não imaginava que quando não estava presente, seu apelido na realidade era “diarréia enlouquecida”. A garota cresceu, mudou de cidade, mas o desejo de criança permaneceu. O problema é que Vera não tinha um namorado há quatro anos, e a pequena noiva da rua 41, beirava os 37 anos de idade. Para uma mulher de 37 anos, não ser casada, e não ter a possibilidade de casamento nem em vista, é uma vergonha. Para ela, para família, e até para o futuro noivo. Todos sabem que, se com 40 anos a mulher ainda é solteira, algum problema ela deve ter. O estranho nisso tudo, é que Vera era extremamente normal. Nunca ouve uma mulher tão normal quanto ela. Exceto algumas excentricidades que todos possuem, como gostar de arroz queimado, ter vergonhosas crises de riso em momentos de desespero e não conseguir ver séries de números com mais de 3 dígitos e não somá-los. Detalhes a parte, ela é normal. Também não é de má aparência. Não é possível defini-la como bonita, tão pouco como feia.
Ela já havia se conformado com sua realidade, mas nessa época do ano era sempre a mais difícil. O dia dos namorados, que teoricamente era pra ser um dia péssimo, era um ótimo dia. Antes de chegar à imobiliária, onde trabalhava, ela passava pela floricultura, escolhia com cautela as flores mais bonitas, e pedia que entregassem o presente algumas horas mais tarde, no escritório. As velhas senhoras, e até as estagiárias jovenzinhas contorciam-se de inveja e de curiosidade quando viam aquele imenso buquê destinado a ela. Um caso antigo – dizia ela, com um sorriso no rosto enquanto simulava uma ligação apaixonada para algum rapaz inexistente. E voltava para casa caminhando, com as flores na mão, imaginando as pessoas que passavam por ela, e invejavam o bom gosto do apaixonado namorado que lhe dera flores. Mas em dezembro, ela sempre estava de férias, suas poucas amigas estavam com suas famílias, maridos ou namorados, e ela se via sempre sozinha, numa cidade grande, sem ninguém. A solidão era sua única companhia.
Era véspera de natal, e Vera encontrava-se sentada no sofá, perguntando-se porque insistem em todo ano, exibir aquele show cafona do Roberto Carlos na TV. Observou aquele ex-galã cantando músicas que embalaram algumas de suas noites, admirou seus cabelos grisalhos, e questionava-se se o Rei era adepto a escova progressiva, ou a boa e velha chapinha. Subitamente desejou um gole de vinho. Afinal, lá estava ela, na noite de 24 de dezembro, sem nenhum peru que pudesse comer ou comê-la. Merecia embriagar-se até que o álcool a fizesse dormir feito uma mulher amada. Vestiu uma roupa qualquer, e pelas ruas escuras e quase vazias, foi em busca de seu único e acessível prazer. Encontrou uma loja de conveniência, num posto de gasolina a duas quadras de sua casa. Foi muito mal atendida pela vendedora. Se ela tivesse em qualquer outra situação, entenderia que o mau atendimento não é uma coisa pessoal, mas que é muita sacanagem ter de trabalhar enquanto todos estão se divertindo, mas naquele dia, Vera não entendeu, e do fundo de sua alma, não queria mesmo entender. Ela adoraria ter um trabalho para fazer naquela noite, ocupar a cabeça, mas não tinha. Estava presa com ela mesma no apartamento mais triste da terra, exceto claro, o da família Richthofen.
No pequeno e precário estabelecimento não tinha vinho, então pegou duas garrafa de vodka. Antes de chegar ao caixa, Vera vingou-se da má vontade da vendedora: soltou uma das garrafas, que espatifou no chão, fazendo com que a vodka espirrasse por quase, se não todo, o local. Acho que Deus não quer que eu e meus amigos fiquemos bêbados essa noite! Vou levar uma só! – disse, sorrindo descaradamente. Pagou, e saiu da loja.
Voltava para casa em passos lentos e goles profundos. A rua estava vazia. Virou a esquina, e um carro vinha em sua direção, e quando se aproximou mais de Vera, o automóvel diminuiu a velocidade. Em dias normais, Vera já teria saído correndo, mas no natal, não teve medo. Ninguém mata ninguém no dia 24 de dezembro. Tem que ser uma pessoa bem sem vergonha na cara. O vidro do carro desceu, fazendo aquele barulho de tecnologia barata ecoar pela noite. Um rapaz bem afeiçoado disse alguma coisa, mas Vera não conseguiu ouvir. Talvez porque a vodka já estivesse fazendo efeito, ou porque o cara tenha falado baixo demais. Isso não vem ao caso. Vera caminhou em direção ao carro e inclinou-se um pouco. Entra, agora! – disse o rapaz, num tom de voz tão másculo e violento, que a mulher entrou.
- Quero dinheiro! Cartão de crédito! Celular! A gente vai dar uma volta até o banco!
Retiro o que disse anteriormente, Vera é uma mulher quase normal, digo quase, porque se fosse normal mesmo, teria feito o que o rapaz pediu, mas não foi o que fez. Como uma pessoa quase normal, Vera teve uma de suas vergonhas crises de riso nervoso. O homem achou que ela estivesse chorando no inicio, mas assim que percebeu que era riso, mandou com que ela calasse a boca. Vera deu gargalhadas! Tentava pedir desculpas, mas não conseguia. Dava muita risada. E o homem, incompreensivelmente não se irritou mais. Começou a achar graça também. Os dois riam agora. Ela, porque achava que iria morrer. Ele, porque achava que ela era louca. E passaram-se um ou dois minutos assim, até que Vera conseguiu se conter, e parou de rir. O silêncio que veio a seguir foi a coisa mais estranha que ambos já haviam sentido. Vera então, levou a garrafa de vodka até a boca, e sugou boa parte do liquido garganta abaixo.
- Tem um caixa 24 horas depois do terceiro farol, à direita. Quer vodka?
O rapaz aceitou. Assim como ela, deu uma bela tragada na bebida. Tirou do cinzeiro do carro um baseado e acendeu. O cheiro forte, e o som da brasa queimando fizeram com que Vera se desse conta do que estava acontecendo. Estando ela com 37 anos, solteira, sozinha, sem perspectiva de melhoras, pediu-lhe então para experimentar. Não posso morrer sem nunca ter fumado maconha – concluiu ela.
Duas horas depois, o rapaz ainda não conseguia achar o tal banco, e tão pouco voltar para a rua onde pegara a moça ruiva. Vera não se importava com aquilo. Sinceramente, ela tinha a certeza que aquele fora a melhor véspera de natal dos últimos anos.
O rapaz, que se chamava Jorge, estacionou o carro. Ele também estava gostando daquilo tudo. Talvez o efeito da maconha tenha amenizado toda a situação. Começara a sentir-se atraído por Vera, e Vera, naquela altura, sentia-se atraída por tudo e todos.
Quando o relógio marcou meia noite, Jorge a beijou. Um beijo longo, lento, quase apaixonado. Ela correspondeu.
Começaram a namorar, e Vera não precisava mais fingir ligações para falsos namorados. Um ano depois se casaram, fazendo com que a mulher, antes solitária, tivesse a certeza que não havia absolutamente nada de anormal com ela. Sentiu-se amada. Foi um casamento lindo. Vera estava linda. Na noite de núpcias, Jorge espalhou pelo quarto pétalas de rosas, e segurou a cabeça de sua esposa por cinco minutos dentro da hidromassagem. Jorge também era quase normal, digo quase porque, ninguém normal assaltaria alguém na noite de natal.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Madalena


Era uma noite de maio, talvez a mais fria dos últimos tempos. O vento enrubescia as bochechas das pessoas que insistiam em sair de casa, e qualquer sorriso mais avantajado poderia provocar uma rachadura nos lábios já congelados. Foi devido à intensidade do frio, que Angélica, mesmo estando num dos quartos de motel mais nojentos que já havia freqüentando, estava feliz de não estar do lado de fora. O pequeno quarto era bem precário. Um carpete marrom se estendia por todo chão, e em certos lugares, quando pisado, sentia-se a sola dos pés descalços grudando suavemente no chão. Não tinha muitas mobílias. Um criado mudo com um abajur de porcelana estava do lado de uma grande cama, que ocupava quase todo o dormitório, dando a impressão de que o cômodo era muito menor do que realmente era. Uma poltrona de estofado azul estava estrategicamente colocada num dos cantos, sentado nela, dava-se para analisar tudo o que acontecia no quarto. Era assim que Angélica se encontrava. Sentada na poltrona, ainda nua, dava longos tragos no seu cigarro, e observava aquela cena. Lá de fora, a luz do poste conseguia atravessar a janela e juntava-se com a fumaça que a moça soltava de seus pulmões, criando assim uma cortina mágica, que fez a mulher lembrar-se da nave da Xuxa, dos anos 80 . Para um produto que prejudica a saúde, o cigarro até embelezava o ambiente. Depois de um tempo, Angélica não tragava mais para suprir sua necessidade de nicotina, mas apenas para ver a fumaça densa se dissolvendo no ar, e lembrar-se na sua infância. O grande volume que estava sob a cama se movimentou, soltou alguns grunhidos e voltou a dormir. Angélica sentiu-se aliviada, não queria transar de novo. Não nos próximos trinta minutos, e não mais com aquele homem. De dentro da bolsa, retirou um pequeno frasco, e derramou o pó branco na sua coxa nua. Enrolou uma nota de dez reais, e aspirou tudo numa agilidade quase profissional. Levantou-se e foi ao banheiro. A imagem que via no espelho, não a agradava. Achou seus seios caídos demais, sua pele seca demais, e seus olhos fundos demais. A vida que estava levando nos últimos três anos era demais para aquele corpo mirrado suportar.
Fazia força para acreditar que, no fim das contas, aquele trabalho não era tão doloroso assim. Sempre que alguém a questionava, ela dizia que fazia pelo dinheiro, e também porque gostava. Para dar mais veracidade a sua versão, e sentir-se um pouco menos constrangida, contava em tom de deboche que quando criança, já fazia varias posições do kamasutra com sua Barbie e seu Ken. “Sempre gostei de sexo” – dizia antes de mudar de assunto repentinamente.
O homem acordou, e foi ao banheiro. A bunda peluda e murcha tremia feito gelatina a cada passo que ele dava. Angélica acompanhou aquele caminhar tão pesado somente com os olhos, e segurou-se para não rir do movimento engraço que o membro do senhor fazia. Teve que aspirar mais uma dose de coragem para agüentar tudo outra vez. Deitou-se na cama, e sentiu a textura do lençol. Cheirava forte a naftalina, mas em certos pontos, um perfume suave, provavelmente daquele cliente, amenizava os outros odores.
Assim que a porta do banheiro abriu, Angélica assustou-se com a visão que teve. O homem já estava vestido, e de seus olhos, lagrimas escorriam, molhando as bochechas e penetrando ao meio dos pêlos da barba grossa. Angélica percebeu no ato: Agora sua boca teria outra função, a de falar e aconselhar.
Sentaram-se na cama, e ele começou a desabafar. Contou que tinha mulher, e duas filhas. Angélica se fazia de interessada, mas estava tentando abotoar seu sutiã sem parecer deselegante. Ele tirou da carteira duas notas de cem reais, entre tantas as que tinha ali. Entregou-as a moça, e continuou falando. O homem estava com câncer, e jurou que só aceitou os serviços daquela morena, pois tinha medo de morrer sem ter realizado alguns de seus fetiches. Pediu desculpas, e desabou no choro. Nos intervalos dos fortes soluços que ele dava, dizia em tom baixinho que não queria morrer. Que amava a sua vida.
Angélica se emocionou, afinal, apesar de todos duvidarem, ela também tinha sentimentos. Vestiu-se por completo e sentou-se na poltrona, observando aquela cena triste e patética ao mesmo tempo. Percebeu que seu cliente tinha uns traços muito parecidos com o do seu falecido pai, e se parabenizou mentalmente por não ter tido essa percepção no começo da noite. Isso teria sido muito difícil pra ela, e certamente, mais caro para homem.
Já passavam das vinte e uma horas, e ela ainda teria que trabalhar mais. O homem continuava chorando, e pela primeira vez naquela noite, desejou estar do lado de fora, congelando no frio da madrugada.
Será que você pode me dar uma abraço? – disse o senhor com muita dificuldade. Angélica deve ter feito uma expressão negativa, pois logo em seguida, o homem continuou:
- Estou morrendo, menina. Só um abraço.
Ela caminhou suavemente até ele, deixando pegadas do seu salto agulha no carpete. Ela o abraçou, e por um momento, sentiu-se com seu pai novamente. O homem a apertou fortemente, como uma mãe quando abraça seu filho antes do primeiro dia de aula. Ela entregou-se a esse sentimento, e quase derramou lagrimas junto com aquele desconhecido. As mãos do homem percorreram o seu corpo, e repousaram sob suas nádegas, apalpando-as. As mãos dela deslizaram sob as costas dele, repousando no abajur de porcelana que estava sob o criado mudo. Levantou o objeto e acertou em cheio naquela careca lustrosa. O corpo caiu no chão, já imóvel. Angélica apanhou a carteira, recheada de notas de cem, e colocou dentro da bolsa.
Eram quase dez da noite, e ela já tinha o dinheiro de uma noite toda de trabalho. Respirou aliviada. Chegaria em casa a tempo de contar uma história para sua filha dormir.