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quinta-feira, 5 de março de 2009

Sapatos e guarda-chuvas




Aquele silêncio ensurdecedor estava matando-o. A caixa metálica tinha mesmo o poder de transformar as pessoas em zumbis. Ele se sentia assim, um zumbi. Dentro e fora do elevador. O alívio de sair do trabalho lhe causou até uma pequena vertigem, assim que colocou o pé na rua e sentiu a primeira brisa de monóxido de carbono penetrar nos seus pulmões. Talvez esse tenha sido o real motivo para a vertigem.
Afrouxou a gravata e enfiou o blazer na mochila, que destoava descoladamente do seu figurino. Com passos rápidos ele caminhava ardilosamente entre aquela multidão de rostos desconhecidos.
Ele era um homem sozinho, e se incomodava com isso. Sempre quando ia à padaria comprava dois pães, mesmo sabendo que comeria somente um. Não queria que pensassem nele como “o rapaz que toma café sozinho”. Fazia tanto tempo que ele não ia ao cinema, que o último filme que havia assistido em grandes proporções já estava sendo transmitido na sessão da tarde. Tinha parado de viver. Estava apenas sobrevivendo. A única coisa que diferenciava seus dias da semana eram os programas de TV, que por motivo nenhum, deixava de assistir. Sentia-se como Bill Murray em Feitiço do Tempo, mas sem o romance.
Tropeçou numa lasca de concreto solta da calçada, foi um destes tropeços que mais se parecem com um pequeno passo de dança, mas já foi o suficiente para lhe corar a face. Não entendia o motivo de sentir-se envergonhado diante de pessoas que provavelmente ele nunca mais iria ver. Pessoas que nunca saberiam o seu nome, nunca saberiam se ele prefere inverno ou verão, nunca saberiam que ele detesta chocolate.
Uma garoa bem fina começou a cair. A imagem daquelas pequenas gotas de água sendo atingidas pelos faróis dos carros era linda. Pareciam milhões de fadinhas, caindo do céu. Milhões de “sininhos” que caiam desconsoladas pela indiferença de Peter Pan. Apressou os passos, mas a chuva acompanhou sua ansiedade, e aumentou. Ainda caminhando abriu a mochila, enfiou a mão no bolso maior, e tirou lá de dentro mais uma porção de decepção. Esquecera o guarda-chuva. Teve então de parar em algum lugar para se proteger. Se molhasse aquele sapato, teria quer ir trabalhar usando chinelos no dia seguinte, e certamente isso não seria muito bem visto pelos seus supervisores. Encontrou um ponto de ônibus. Por incrível que pareça, vazio. Não pode sentar, já que os acentos estavam todos molhados, mas ficou ali de pé, observando.
Uma moça de pele bem branca e bochechas bem rosadas, talvez devido a corrida que ela tenha feito para fugir da chuva, entrou também sob o ponto. Tirou uma sacola plástica, dessas de mercado, da bolsa e com ela forrou um acento, e sentou. Ele olhou para ela, e ela sorriu. Pegou uma caneta, e com uma agilidade que só as mulheres possuem, enrolou o cabelo e cravou aquela bic entre os fios, prendendo-os assim. Retirou os sapatos dos pés, e com um jornalzinho que distribuem no metro, começou a tentar seca-los.
- Se esses sapatos não secarem, amanhã vou ter que trabalhar de chinelo – disse ela, rindo com tamanha feminilidade que fez com que ele sentisse seu rosto queimar.
Ela era uma mulher bonita, e nitidamente comunicativa. Morava sozinha desde os dezessete anos, e não esqueceu o guarda-chuva em casa, como ele. Ela não tinha guarda-chuva. Sempre que alguma amiga a alertava sobre o tempo, tentando evitar um banho desnecessário, ela respondia que não era feita de açúcar, que tomar banho de chuva faz parte da vida. Mas naquela ocasião, eram os sapatos que corriam perigo.
Ficaram os dois ali, nos primeiros minutos em silêncio. Depois ela puxou um assunto qualquer, e a conversa começou a se desenrolar. Ela o fez rir. E ele a fez corar.


O mundo poderia acabar ali, mas aquela chuva deveria continuar. Tinha que ser assim. Quando a chuva parasse, cada um voltaria para o seu destino, para a sua vida, e ele não queria isso. Mas a chuva era uma dessas chuvas rápidas, de verão. Com a velocidade que começou a molhar o asfalto, parou. Os pássaros começaram a sair de seus ninhos, e as fadas voltaram para o lugar delas, onde ninguém sabe onde fica.
O casal se despediu com um aperto de mão frio, embora estivessem quentes por dentro.
Ele chegou no seu pequeno apartamento, jogou fora seu guarda-chuva e não ligou a TV.
Ela dormiu, desejando que o dia seguinte fosse chuvoso. E foi.