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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O Boto




Já havia se passado quatro horas de viagem, e tudo o que Rita podia ver era o nada. A mesma vista que tinha naquela panorâmica janela do ônibus no inicio da viagem, continuava a mesma. As vezes uma vegetação rasteira mudava a paisagem, mas tudo parecia sempre igual. Sempre a mesma coisa, assim como era sua vida naquela precária cidade, que agora, deixava para trás. Não era só sua cidade natal que deixava para trás, mas também seus pais, seus quatro irmãos, e os poucos amigos que havia conquistado nos seus dezenove anos de vida. O sacrifício valia a pena, e como dizia uma frase do calendário do ano passado – “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Rita nunca conseguiu entender bem essa frase, mas tinha a certeza que ela a confortava, pelo menos um pouco.
A poltrona, que até três horas atrás a deixava bastante confortável, agora a incomodava. Sua coluna já mostrava sinais de fraqueza, e a moça já se questionava se deitar no corredor do ônibus chamaria muito atenção. A fome a apertava o estômago, mas sabia que tinha pouco dinheiro, e preferiu guardar o pão que sua mãe fez para a viagem para comer somente quando chegasse a cidade, ela realmente não estava disposta a compartilhar o pão com o senhor que sentava ao seu lado. Sentiu-se um pouco mesquinha, lembrou-se de Jesus, que dividiu um pão entre doze pessoas, mas duvidou que o Messias fosse capaz de dividir o mesmo pão entre quarenta e duas, quarenta e três com o motorista. Desabotoou a fivela da sua sandália de couro, já surrado com o tempo, e colocou os pés no banco. Assim sentiu-se mais confortável, suas coxas faziam pressão sob seu estômago, enganando a fome que sentia, e a posição esticou um pouco sua coluna, fazendo-a estralar na primeira respiração profunda. A pequena mala preta de mão que carregava sob o colo foi colocada no chão, mas antes, Rita retirou de lá um caderno espiral, que já não tinha capa, mas mesmo assim com muitas orelhas. No caderno, sua única segurança: o endereço de sua melhor amiga que havia deixado a cidade há dois anos. Cecília era uma moça tão sonhadora quanto Rita, talvez por isso as duas fossem tão próximas. Eram tão amigas que menstruavam juntas, desde a primeira menstruação. Quando essa deixou a cidade, Rita sentiu-se tão desconsolada que até pensou em se jogar no riacho que havia nos fundos de sua casa, mas decidiu que iria trabalhar para juntar dinheiro e ir atrás da amiga. Era isso que estava fazendo. Acreditava que passaria sua vida ao lado de Cecília, e Cecília acreditava no mesmo.
O senhor que sentava a sua frente reclinou a poltrona, deixando assim um espaço tão pequeno, que se Rita espirrasse poderia ter um traumatismo craniano pela pancada que daria no encosto da cabeça. Reclinou a dela também, o que fez a senhora que sentava atrás reclinar também, assim foi se fazendo, como peças de dominó, um fazendo o outro reclinar sua poltrona, até o último passageiro. Rita dormiu, sonhou que já estava na cidade, e que ela e Cecília riam juntas de alguma coisa que havia acontecido. Sonhou que estava novamente no quarto da amiga no dia que, juntas, cortaram o cabelo uma da outra. Sonhou com a felicidade dos seus pais ao abrirem a primeira carta que ela mandara, uma carta gorda, com muitas notas de dinheiro dentro.
Foi então despertada por uma senhorinha baixinha, de pele bem morena, que tinha os cabelos tão bem presos no alto da cabeça que passava a impressão de que estava esticando todos os músculos da face. Excitada que havia chegado ao seu destino, que encontraria em alguns minutos a amiga que há anos não falava, pegou sua mala e desceu rapidamente do ônibus, que assim que Rita colocou os pés no chão frio de cimento, daquela cidade tão fria, partiu numa arrancada, talvez para outro destino, para levar outras pessoas aos seus respectivos sonhos.
A rodoviária encantou a jovem que tinha tantos planos em mente. As pessoas eram tão bem vestidas, e caminhavam como os cavalos treinados que vira uma vez na romaria. Parou um pouco e se encostou num grosso pilar, distante daquela apressada multidão. Já era noite, e Rita começava a sentir o frio na barriga que antes era excitação, se transformando em medo. Abriu a mala a procura do caderno, e uma onda de gelo frio, paralisante tomou conta de todo seu corpo. Esquecera o caderno dentro do ônibus. Quis desabar no choro, mas já que teve a coragem de sair de uma cidade tão pequena e se arriscar ali, naquela grande metrópole, conteve-se. Foi caminhando, contornando a calçada da rodoviária.
Um jovem bem vestido, certamente percebendo a situação da moça, parou seu carro e conversou com a garota. Rita explicou-lhe o que havia acontecido, e prontamente ele a convenceu a aceitar uma carona. Te levo até a delegacia de policia, e pelo nome completo de sua amiga, podemos descobrir seu endereço – disse o jovem, antes de esboçar um dos sorrisos mais bonitos que ela já vira, sem ser os dos artistas da TV.
A garota, mesmo com medo entrou no carro do rapaz, segurando sua mala preta, e tendo a certeza que assim que chegassem na delegacia, faria questão de dar todo o seu pão para aquele bondoso rapaz.


Cecília esperou ansiosa a amiga durante a noite inteira, e com o passar dos anos, acostumou-se a menstruar sozinha.
sábado, 3 de janeiro de 2009

A saga de Bolly




A esteira estava cheia, Bolly já podia ver, eram milhões. Milhões de pequenas garrafas verdes com seus líquidos tremulantes. Enfileiradas com matemática e higiene. Escuro.
Bolly estava nervosa, se tivesse um coração dentro do seu corpo cilíndrico, provavelmente ele estaria acelerado. Em instantes um turbilhão de movimentos bruscos chacoalharam os sentimentos de Bolly. Parecia que ia explodir e naquela circunstância, isso era bem possível. Luz. Tudo o que se podia ver era luz. Estou morta? – pensava Bolly temerosamente. Mal se acostumara com aquela intensa claridade e foi apanhada. Sentiu uma mão quente a sua volta e pode perceber que tinha companhia. Não estava mais sozinha naquela empreitada. Escuro.
- Para onde estamos indo?
- Para onde todas nós vamos, meu bem! Para o estrelato!
As horas seguintes foram as mais terríveis da vida de Bolly. Depois de ficar horas dentro de um lugar escuro, rolando incessantemente e quase sendo sufocada por uma grande coberta de plástico fino, foi colocada deitada num lugar frio. Muito frio. Agora estou morta! – Se convencia Bolly. O estresse era tanto, que Bolly estranhamente caiu no sono, estava cansada, e o silêncio quase perturbador a ajudou a relaxar.
Sentiu uma dor forte na cabeça, foi virada em diferentes ângulos, abraçada por diferentes mãos, e despejava em pequenas parcelas alguns mililitros de sua vida. O cheiro triste do tutti-frutti invadia a mesa, semelhante ao cheiro de pipoca na porta do cinema. E aos poucos, como se fosse algo muito rotineiro, como se fosse uma das clássicas torturas chinesas, foram assim, bebendo toda a sua alma.
Bolly estava fraca. Sentia-se enjoada, como se tivesse acordado numa quarta-feira de cinzas.
Estava novamente envolta à coberta de plástico grudento, mas agora, haviam mais quatro feito ela, esmagadas, como trabalhadores no metrô às seis da manhã. Foram separadas uma a uma, e jogadas novamente na esteira. Bolly embora vazia, sentia-se cheia, cheia de esperança e felicidade. Era muito bom, naquelas alturas, se sentir a caminho de casa novamente. A esteira corria, aos poucos garrafas e mais garrafas iam caindo num grande buraco de metal.
É fogo! É fogo! Vamos morrer! Não posso morrer, ainda sou jovem! Jovem! – Gritou uma garrafinha de 250 ml segundos antes de ser atirada buraco abaixo.
O pânico tomou conta daquelas pequenas criaturas. Bolly pôde ver toda sua vida perante seus olhos. Sentia uma sensação estranha. Sabia que iria morrer, em poucos segundos. O buraco se aproximava, e a única saída era orar, já que como estava seca, Bolly havia sido impedida até de chorar. Uma dor aguda foi se apoderando do seu corpinho roliço. O buraco estava prestes a engoli-la. Escuro.
A esteira estava cheia, Bolly já podia ver, eram milhões. Milhões de pequenas garrafas verdes com seus líquidos tremulantes. Enfileiradas com matemática e higiene. Escuro.