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quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Sete



O sino da igreja bateu três vezes. Ela, como ultimamente andava com o sono muito leve, despertou. Deus uns tapas no travesseiro com a intenção de deixá-lo mais macio, mas sabia que não conseguiria dormir novamente. Contentou-se em admirar as cores do ser quarto perante a penumbra. O rosa adquirira outra tonalidade naquela circunstância. Caiu o olhar em uma de suas bonecas e de certa forma, achou graça da situação que as duas se encontravam – paradas, com os olhos arregalados, olhando para o vazio. Lembrou da história que ouvirá no colégio, e mesmo não sendo a boneca assassina da Xuxa, preferiu se precaver. Levantou-se e atirou a boneca dentro do guarda roupa, deu duas voltas na chave, e voltou para a cama.
A noite estava demasiadamente quente, mas não era a temperatura desagradável que a inquietava.
Rebeca tinha seis anos, em poucos dias faria sete. Considerava-se uma criança infeliz. Talvez, se ela fosse outra pessoa e a conhecesse no parquinho da praça, sentiria pena de si mesma. Crianças raramente têm essa noção de felicidade e tristeza, mas Rebeca tinha isso muito bem definido. Laura, sua mãe, morrerá há dois anos de câncer no pulmão. Ouviu uns comentários de que o tumor estava do tamanho de uma laranja, mas naquela idade, e com a imaginação que tinha, achou que a laranja havia deixado sua mãe doente. Não comeu mais laranja desde então. Valter, seu pai, se distanciou muito da filha nesse tempo, ele sempre fora um homem fraco. Os homens são sempre mais fracos que as mulheres. Durante esse tempo de luto, Rebeca não se deu o luxo de derramar uma lagrima pela perda da mãe, já que o pai derramava o suficiente para os dois. Há três meses, Cintia começou a freqüentar a casa da família. Rebeca a achava ridiculamente estúpida e feia demais para namorar com seu pai, mas não fez birra e tentou compreender a situação, afinal, ele tinha lá as suas necessidades, e pelo menos agora, ele voltara a fazer a barba regularmente e já não espetava as suas bochechas com aqueles pêlos duros e pinicantes. Tentou voltar a comporta-se como uma menina normal, mas as atenções estavam sempre voltadas a Cintia, e isso a magoava mais que tudo na vida. A garota não estava feliz com essa situação, e a felicidade que pairava sob aquela pequena casa de janelas azuis, não pairava sob a pequena criança de cabelos loiros. A cada dia que se passava, se dava conta que sua vida estava tomando um rumo totalmente diferente daquele que ela havia imaginado. Realmente, Rebeca era muito precoce.
Foi diante desses problemas e de tamanha angustia que até a faziam vomitar, que bolou um plano. Rebeca estava mais que decidida: Fugiria com o circo.
Naquela pequena cidade de um pouco mais de quinze mil habitantes, o costume de ir ao circo era quase um ritual. Uma vez a cada quatro meses, os caminhões coloridos despontavam no inicio da rua, e vinham alegrando e contagiando os olhos curiosos que admiravam a passeata. Sempre fora assim, desde a época que seu pai ainda era um garotinho gordo.
A lona já estava perdendo a sua forma mágica, pronta para se transformar em um grande pedaço de nada, jogado em cima do caminhão, e se não fosse naquela hora, a menina acreditava que não seria capaz de suportar mais quatros meses para ter uma nova chance.
Novamente levantou-se da cama, agora menos sonolenta, e a escuridão já não era um grande empecilho para seus olhos. Puxou uma pequena mala da Hello Kitty que escondera entre a cômoda e a penteadeira da Cinderela. Vestiu um dos seus vestidos mais coloridos e calçou um sapatinho vermelho que ela adorava, mas quase nunca usava porque lhe dava bolhas nos pés. Não importava-se com a dor que iria sentir, queria apenas causar uma boa impressão ao dono do circo. Dentro da mala colocou três peças de roupa, uma bússola que ganhara de seu avô, e uma foto 3 x 4 de sua mãe. O segundo maior medo de Rebeca era de um dia, quando se transformasse em mulher, não se lembrar mais do rosto de sua mãe, já que o cheiro ela já havia esquecido. O primeiro era morrer de câncer, como ela.
Desceu as escadas imaginando como seria essa sua nova vida. Poderia ser bailarina, palhaça, ou vender algodão doce. Só não toparia fazer nada que envolvesse altura, já que morria de medo de lugares altos.
Deixou um bilhete, escrito com uma letrinha redonda e caprichosa, colado na geladeira. Deu uma ultima olhada na casa, como se tivesse se despedindo dos móveis e das paredes que tanto sabiam de seus sentimentos, e saiu pela porta da frente, cortando a cortina de neblina que dava um ar quase mágico quando encontrava-se com a luz dos postes da rua.
Pela manhã, seu pai se deu conta do que havia acontecido, mas já era tarde. O circo já havia deixado a cidade.
Quatro meses mais tarde, os caminhões coloridos voltaram à região. Mas a menina não voltou com eles.
Rebeca já tinha sete anos, e finalmente pôde sentir o cheiro de sua mãe novamente.