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quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Clarissa à Bolonhesa




Já passavam das onze quando Clarissa resolveu jantar. Não por fome, ou porque tinha passado o dia todo no escritório e não havia almoçado. Resolveu jantar apenas por falta de opção. Não estava num momento muito criativo para trabalhar na nova campanha de detergente, nada de interessante passava na TV, e os gêmeos já estavam dormindo. Retirou do freezer uma das caixas de lasanha e atirou-a no microondas. Já que estava de pé, e entediada, resolveu também beber uma dose de wisky. Clarissa jamais se imaginaria, na vida, bebendo wisky. Para ela, wisky era coisa desses velhos gorduchos engravatados, que em uma mão seguram o copo da bebida, e na outra, um lenço para enxugar o suor que, assim como no copo, brota da generosa cabeça calva. Evidente que todos a sua volta também jamais imaginariam vê-la com um copo de wisky. Clarissa era daquele tipo frágil de mulher. Ela não deveria ter mais que um metro e sessenta, tinha os cabelos curtos, na altura dos ombros, e negros. Mais negro que seu cabelo eram seus olhos. Talvez por um motivo de contraste, já que sua pele tinha o mesmo bronzeado que uma folha sulfite, seus olhos gritavam naquele rosto tão delicado. Quando pequena seu avô materno a chamava de olhos de jaboticaba, pois, segundo ele, tinham o tamanho da fruta e a alegria da primavera. Os grandes olhos de Clarissa já não são mais comparados com fruta, e já não são tão alegres. Há um ano, Clarissa e Vinicius, seu marido, saíram para uma viagem de um final de semana. Iriam comemorar a volta de Clarissa ao trabalho. Eles eram pais agora, e com isso, completava-se a vida perfeita daquele casal. Conheceram-se no primeiro ano da faculdade, namoraram, noivaram, e se casaram. Alguns diziam que ambos perderam a virgindade juntos, mas um boato de que Vinicius havia transado com Débora, a “garota corrimão” do curso de gastronomia, deixava algumas suspeitas no ar. A viagem foi digna de um conto de fadas. Pareciam que tinham voltado à época do inicio de namoro, onde qualquer olhar, qualquer sorriso faz com que os pêlos do braço se arrepiem. No caminho de volta, o casal apaixonado estava ansioso para voltar para casa, passar no apartamento da mãe de Clarissa e pegar os gêmeos. Mas isso não aconteceu. Vinicius perdeu o controle do carro numa curva estreita. No momento em que o carro dava cambalhotas no ar, o corpo do homem foi atirado longe, e caiu fazendo um barulho seco no asfalto, ainda molhado pela chuva. Com Clarissa, apenas ferimentos leves, mas Vinicius morreu horas depois, no hospital. Desde então, Clarissa adotou esse novo comportamento. Agora ela bebia, já não se cuidava, e o único motivo para continuar vivendo era seus filhos, que fora obrigada pelo destino a criá-los sozinha.
Completou o copo com wisky, e tomou puro, num gole. Quando o copo bateu na mesa de centro lembrou que deveria ter bebido com limão e sal, mas logo em seguida se deu conta de que estava bebendo wisky e não tequila. A bebida já começava a dar sinal, sugeriu ela num risinho contido de canto de boca. Caminhou pelo comprido corredor até o quarto dos gêmeos. Parou diante da porta e se apoiou no batente. A respiração dos seus filhos a tranqüilizava, e por ela, passaria a noite ali, de pé diante deles. Tentou se aproximar, mas pisou num dinossauro de plástico que soltou uma espécie de som que mais parecia o escapamento de uma moto. Era melhor sair dali, antes que o wisky a fizesse derrubar as prateleiras também.
Foi caminhando lentamente pelo corredor. Imaginou que tipo de mãe estava se tornando. Que talvez ela não fosse uma boa mãe para os meninos, e que, eles estariam melhores se ela também tivesse morrido naquele acidente. Ou melhor, que eles estariam melhores se só ela tivesse morrido naquele acidente. Descobriu então, que o seu único motivo de viver, já não era um motivo. Agora, Clarissa tinha um motivo para não viver. Ela não merecia que aquelas duas crianças a chamassem de mãe. Os dois teriam uma vida bem melhor se morassem com sua mãe, por exemplo, ou com a mãe do Vinicius, que mora na praia. Realmente eles iriam ser bem mais felizes.
No final do corredor uma grande janela de vidro hipnotizou Clarissa. Ela caminhou até lá, decidida, como se fosse fazer uma coisa rotineira, do qual já esta até um pouco entediada. Abriu a grande vidraça, e uma brisa primaveril invadiu o corredor. Seus cabelos eram massageados pelo vento, a brisa tocava seu rosto como um conquistador toca o rosto de sua amada. Subiu no parapeito. A imponente cortina branca dançava com agressividade no ar, como asas de uma grande borboleta. Inclinou-se um pouco e pôde ver a rua lá em baixo. Não enxergava bem de longe, mas teve quase certeza que não havia uma pessoa, se quer caminhando. Nem carros. Estava completamente sozinha, como tem sido desde que Vinicius se foi. Soltou as mãos das laterais da janela. Enquanto se inclinava, aos poucos, pensava nos filhos. Pensou no seu avô, que quando era vivo sempre lhe comprava balas de yogurte; pensou na felicidade da sua mãe no dia da sua formatura, e pensou no sorriso de Vinicius, no dia do casamento.
Um apito agudo trouxe Clarissa de volta para a realidade. Voltou sua cabeça para dentro do apartamento e sentiu o cheiro forte de lasanha, que perfumava todo o ambiente. Se deu conta que não havia comido o dia todo, e estava faminta. Clarissa comeu então toda a lasanha, trabalhou um pouco na campanha de detergente, e dormiu abraçada com gêmeos, sabendo que, afinal de contas, ela não era uma mãe tão má assim.

2 comentários:

Thiago Gacciona disse...

Animal cara!!!
Cuidado com o whiskey, hein...
Melhor eu começar a deixa um espaço pra lasanha...
Abraço...

Amanda Roldan disse...

Cacete, Carlão! Ficou foda pra caramba!
Vc tinha q escrever um livro de contos, cara! Eu ia ler, com certeza!
Bj

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